28.9.09

Desenho-te


Desenho-te, meu amor, embora ainda não conheça tua face. Desenho te imaginando bela e pura cogitando tuas nuances e curvas. Desenho-te com cabelos longos, à deriva no vento, espelho do sol. Desenho teu toque, teu cheiro, teu olhar e inebriado sinto tua mão, teu perfume e tua espreita. Desenho cada uma de tuas imperfeições, pois é em conjunto que elas te fazem perfeita.
Desenho-te, paixão, por linhas retas esperando as horas tortas, em que a vida, sinuosa, cruza nosso caminho. Desenho-te errado, porque é só ao seu lado que meu mundo será acertado. Desenho-te em branco e preto, porque tua presença traz as cores do mundo. Desenho-te em rascunho, e depois confirmo em nanquim, para te decorar.
Desenho-te criança, para repetir a mim que sempre de ti deverei cuidar. Desenho-te moça, para dizer a mim que a cada novo dia deverei te conquistar. Desenho-te mulher, para confirmar a mim que sempre hei de te amar. Desenho-te senhora, para me certificar de que contigo para eternamente vou ficar.
Desenho-te, minha vida, templo do meu amor-maior, porque é diante de ti que cairei de joelhos a te venerar. Desenho-te comigo na cama, nas horinhas do amor, nos momentos em que somos a expressão máxima de nossos sentimentos. Desenho tuas mãos, guiando minha vida por este mundo que me fazes feliz. Desenho-te.



Imagem de Sujit Sudhi.

22.9.09

Cem contos


Ao acordar, procurou pelos contos que havia organizado na noite anterior. Tinha empilhado-os sobre a mesa as cem histórias, pela ordem da data em que foram escritas. Revirou as gavetas, procurou na estante de livros e depois de uma minuciosa busca pela casa realizou de que de fato os havia perdido.
Decidiu sair; sabia que andar a esmo não traria os contos de volta. Queria apenas espairecer. Talvez alguma ideia de onde os havia guardado surgisse. Rumou à praia, a caminhar pela areia, a molhar os pés. E já estava andando a um bom tempo quando avistou ao longe algumas tochas na areia. Pôde ver também que um rapaz ainda acendia mais.
De curioso, foi observá-lo e quando chegou perto, percebeu nas mãos dele a sua pilha de contos, já bem diminuta – talvez em quatro ou cinco folhas. E, ao cuidar as tochas já acesas na areia, viu que eram os seus contos que estavam servido de tochas.
Ensimesmado, não acudiu nenhum de seus contos, aliás sequer teve tempo de salvar algum. Em pouco tempo estavam todos queimando à beira-mar.
“São meus contos!”, gritou ao rapaz, fazendo menção de tentar apagá-los.
O rapaz apenas o fitou e, sem muito preocupar-se, voltou a olhar os papéis crepitando. Avançou sobre ele e ao encará-lo descobriu quem era:
“Julian Gasmar! És Julian Gasmar! Como é possível? E… como pôde queimar meus contos?”.
O rapaz, de malícia no canto da boca, respondeu-lhe:
“Não são mais seus, são nossos, são de cada leitor que se dedica a seus escritos. E agora eles estarão impregnados no ar que respiramos, no vento que toca nossa pele e viajarão o mundo quando a maré subir. Esse mundo que escreveste, este vasto mundo, será agora um pouquinho parte de nós.”


Imagem: Outside wall lit lights, de Robert Kruh.


PS: Com esta postagem, chego à marca de 100 contos publicados aqui no blog. Confesso que estou feliz e emocionado. Agradeço a visita de cada um, os comentários, conselhos, críticas e elogios! De coração.


17.9.09

Noite de núpcias


Pelo chão do quarto, pétalas de rosas; velas criavam o ar íntimo e intimista. Despiram-se, cada um devotando beijos ao corpo do outro feito templo do amor-maior. Tomou-a nos braços e se abraçaram e beijaram-se relembrando a primeira troca de olhar e o primeiro beijo molhado. Quanto tempo! Deitaram-se; mas não houve sexo, os dois velhinhos perderam-se noite adentro juntos, um para o outro, nus e enamorados.




Imagem de autoria desconhecida.

12.9.09

Caminhante

para Alexandro

Caminante no hay camino,
se hace camino al andar.

(Antonio Machado)


Ao primeiro passo, realizou a longa travessia, vislumbrou o caminho que se perdia no horizonte. Ao primeiro passo, estufou o peito, encheu-o de coragem e iniciou a caminhada.
Não havia pressa para chegar; não havia laços a ficar. A cada passo, a certeza na alma, o autoencontro. Cada quilômetro vencido era uma milha de experiências que, finas como o pó, deentraram seu eu e passaram a fazer parte do seu íntimo.
As dores sobrevieram, os calos, também o cansaço. Mas era a certeza duma recompensa maior o ímpeto de seguir em frente. E dor foi vencida, os calos e o cansaço.
Cada dia naquele caminho o tornava dono dum trajeto próprio: embora fossem muitos os peregrinos, aquele caminho era só seu. Não que fosse egoísta, mas porque as emoções, angústias e alegrias são individuais e assim cada caminhante faz, ao andar, o seu caminho.
Trinta dias depois, avistou ao longe a chegada. E olhar para trás foi como se olhar menino; foi lançar olhos a um passado distante e perto. Embora a feição ainda fosse a mesma e a aparência pouco tivesse mudado, era de fato outro homem. Mais maduro, mais experiente.
Diante da catedral, sentiu-se pequeno, quase que encolhido; mas foi só adentrá-la que se deu conta de que o lugar era para gigantes.


Imagem: Alexandro Kurovski, no caminho de Santiago de Compostela.

11.9.09

Carta de Julian Gasmar a Nuno Thales da Hora


Acaso já colheste uma rosa? sem usar uma tesoura de poda? Sabes, meu caro... arrancar a flor significa ferir-se com seus espinhos. Penso que nunca viste minhas mãos: não conheces todas as marcas de picos que trago nelas.
Quando se arranca uma rosa, Nuno, o espinho não só fere a mão, como ele se solta da flor e prende-se aos dedos. E tu não sabes quantos espinhos já carrego dentro mim. Tu sequer sonhas a intensidade da dor que provocam.
E eu não sei como tirá-los de mim.
Nuno, não sou uma gralha. Sou esta mão calejada, marcada de espinhos e repletas deles. Sou esta dor de outrem, que não passa e não diminui. Esta é minha sina. Estranha e minha.




Imagem de: teclasap.com.br

6.9.09

O burrinho maltês


Nas bandas do planalto do Paraná, pastava um burro às margens do Iguaçu. Era um burrinho maltês; raros os da sua espécie. Fez do leito do rio sua moradia, ali encontrava pasto fresco. Embora estivesse sempre àquele leito, era nas épocas de cheia que servia os homens, transportando-os de um lado ao outro do rio, evitando-os de afogar. Não cobrava pagamento, mas recebia como gentileza algumas cenouras daqueles que carregava em seu lombo.
Certa vez, viu um vaqueiro, que talvez fosse das bandas de outros pastos, andando à margem do rio. Com ele, vinham várias borboletas e o burrinho nunca tinha visto tantas juntas. Tão feliz, pôs-se a brincar com elas, perseguindo cada uma em seu voo incerto. Tão feliz, corria atrás delas que até tinha vontade de deixar aquele rio e ir para o lugar de onde elas vinham. Tão feliz, porque as borboletas permaneceram em seu redor.
À noite, o vaqueiro voltou. Chovia em tempestade – águas torrenciais. O vaqueiro aproximou-se do rio como se medisse os riscos duma travessia e ali empacou. O burrinho maltês achegou-se nele e inclinou-se para que o vaqueiro fizesse montaria. Nos dois, o receio de cruzar aquelas águas: era noite e chovia – impossível antecipar perigos.
Assim que o vaqueiro fez a montaria, o burrinho adentrou o rio enegrecido pela noite e agitado pela chuva. De logo viu que não dava pé e a correnteza carregava-os leito abaixo. O vaqueiro pesava e ambos, aos poucos, afundavam. Quando a água bateu ao nariz do burrinho, tiveram certeza de que se afogariam. E de medo, o vaqueiro agarrou ao corpo do burrinho, que com muito custo agitou as patas e venceu a força do rio. Nadava. Aos poucos ambos boiaram n’água e atingiram a outra margem.
O vaqueiro não esperou o burrinho subir à terra firme, assim que sentiu o chão próximo pulou e partiu em disparada. Deixou o burrinho à sorte, sendo carregado pela correnteza. Custosamente, o burrinho voltou à margem e saiu da água. Porém não encontrou a recompensa. Viu apenas um cavalo, pastando naquilo que considerava seus pastos.
Na noite seguinte, viu ao longe o vaqueiro se aproximar e com ele mais borboletas. Animou-se: talvez hoje vaqueiro trouxesse sua recompensa. O burrinho esperou a chegada dele, solicito inclusive para uma nova travessia. Mas o vaqueiro não atentou ao burrinho; desviou seu caminhar rumo ao cavalo e lhe ofereceu uma cenoura. Depois ofereceu outra e mais outra e após conquistar a confiança do cavalo, montou-o e atravessou o rio.
O burrinho, de raiva, matou cada uma daquelas borboletas que voavam em seu redor e que acompanhavam o vaqueiro; pisoteou uma a uma, até se certificar de que nenhuma delas mais voaria. E deixou aquele rio porque não mais levaria alguém em travessia.


Imagem de autoria desconhecida.


2.9.09

Carta de Nuno Thales da Hora a Julian Gasmar


Julian, de fato tens asas e por vezes mirei o céu crendo ver-te rodopiar pelos ares. Mas tu não voas... és como a gralha que foge em corridelas após plantar uma semente porque não quer perdê-la de vez.
Julian, as araucárias brotam, crescem e morrem. Rompem o chão sob força doída tentando rasgar o céu. Jamais o conquistam. As araucárias dão sementes, mas cabe às gralhas recolhê-las e plantá-las. Araucária é a vida certa, de eira e beira.
As gralhas, estas voam; uma rota nova a cada bater de assas. São aos bandos, porém solitárias e que mergulham no azul como se entrassem no mar a ser descoberto. Ali e acolá elas semeiam as araucárias, plantam essa semente que cresce e floresce. Gralha é essa curva no céu.
Tu és isso, uma gralha; aceite. Admita que tens medo de alçar voo, de aproximar-se do sol. Nunca saberás ao certo quem é, o que está sentindo e viverá sob a incerteza. É a sua sina. Estranha, mas sua.


Imagem de autoria desconhecida.