18.11.07

Navegar a barquinhos de papel


No princípio havia apenas o mar, um imenso vasto mar azul e como todo mar azul, este mar era calmo e também agitado, cujas calmarias e tormentas variavam co’as correntes que movimentavam as águas daquele mar. O mar era tão azul, dum azul forte, até meio enegrecido em suas profundezas, mas de águas superficiais claras; como se o claro e o escuro fossem separados por algo naquele mar.
Tomou uma folha de papel, branca, sem traços ou margens, e cuidadosamente a dobrou com suas mãos hábeis e ágeis e em pouco tempo havia feito um barquinho de papel. Colocou-o a navegar, um ligeiro sopro o fez tomar rumo e velocidade e o barquinho de papel foi-se pelo vasto mar azul. Tomou outra folha e fez outro barquinho, tomou mais uma folha e fez mais um barquinho e em pouco tempo já havia tantos barquinhos naquele mar azul – impossível contá-los.
Nenhum barquinho regressava, todos navegavam em seu rumo próprio, retilíneos e tortuosos, uns mais rápidos, outros muito vagaroso; alguns as correntezas levaram em velocidade, a outros o único impulso foi o sopro que os pôs a navegar e houve uns poucos que empacaram no caminho e ficaram navegando em círculos. E aquele imenso mar azul foi-se pontilhando de branco.
Longe ou perto do cais, os barquinhos de papel se encharcavam de água, os mais fracos navegavam poucas milhas e logo naufragavam, outros iam afundando bem lentamente e quando já estavam totalmente submersos, distavam muitas e muitas milhas do ponto de partida. Mas o mar azul não chegou a ficar sem barcos a navegar-lhe, porque para cada barquinho naufragado, dez eram colocados a navegar.
E foi quando olhava aquele vasto mar azul pontilhado de branco que notou dois barquinhos em rota de colisão; que aconteceria?, perguntou-se, afundariam juntos? um seguiria seu rumo enquanto o outro imergiria devagar?; pouco antes de se colidirem de frente, os dois barquinhos se emparelharam e seguiram navegando lado a lado, um protegendo o outro quando alguma tormenta lhes lançava ondas gigantescas ou quando um redemoinho ameaçava sugá-los.
No entanto, cada barquinho era um barquinho e um deles começou a absorver mais água que o outro e dava sinais de que iria afundar antes, o outro barquinho tentou regressar ao seu encontro, mas o caminho andado não podia ser retomado e os dois barquinhos começaram a se afastar um do outro, se separando. Ele observou a cena e ponderou: aproximou seu rosto do barquinho que estava naufragando e assoprou sobre ele até emparelhá-los novamente, mas o barquinho já absorvera água demais e não delongou muito a afundar. O outro barquinho, sabe-se lá como, conseguiu atracar; atracou em alto mar, naquele vasto mar azul e ali ficou até absorver água suficiente para afundar ao lado do barquinho que já tinha naufragado.




Imagem de Socketless.

5.11.07

Passaporte único da eterna viagem


Um passeio. Leve deslizar pelas estradas curvas no embalo da velocidade e dos ventos tocando o corpo como num flutuar sem-fim vagueando pelo anil cerúleo daquelas horas únicas, neutras e paradas. Lento caminhar permeando subidas e descidas, trazendo os longes para perto, avistando-os pequenino; diminuto o tão desejado destino.
Assim imergiu numa viagem quiçá insana, viagem de devaneios daquelas que se fecha os olhos para desfrutar cada passo avançado, cada novo constante avançar co’as paisagens todas advindas, paisagens fiéis às sonhadas concomitantes ao passear d’agora.
Feito ave avoando no sertão, feito peixe vencendo as correntezas, feito bicho do mato correndo veloz em campo aberto, viajou; passeou por aqueles caminhos tracejados sem planos prévios num tempo galopante a si mas retardo aos olhares alheios, porque é assim essas viagens de devaneios: tempo indecifrável, incabível de ser medido e paradoxalmente rápido e demorado para ser passado.
Os olhos fechados eram por causa do vento na face e também para sonhar, há-se a necessidade de sonhar de olhos fechados para que as fantasias não se nos escapem das retinas nem nos sejam surrupiadas levianamente. E assim não via que ela também rumava ao seu encontro e também imergida na mesma tresloucada travessia.
Mas não foi preciso despertar para que um o outro percebesse ou notasse sua presença; as linhas as conduziram e feito efeito espelhado as duas mãos, transitando pelo corpo do outro, se encontraram na altura do coração e ali se entrelaçaram, como ponte área e os dois seguiram juntos o passeio para um rumo outro, sem destino de chegada, sem previsão de conclusão, sem tempo limitado a gastar... só o passear das mãos de um no corpo do outro, ele devotando a ela carinhos e bitoquinhas na sua pele: piquenique ao longo do passei; e ela retribuindo-lhe beijos molhados: único passaporte da eterna viagem.


Imagem de autoria desconhecida.