29.8.08

De olhos bem abertos


Hoje dormi sozinho. Hoje dormi, sozinho, como ontem dormi sozinho. E antes de ontem também dormi, sozinho. Acordei todos esses dias e você não estava do meu lado, havia apenas teu cheiro no meu lençol, uma vaga lembrança da tua passada presença.
Dói, sabe disso? dói muito, porque você se foi assim de abrupto como que de mansinho, e levou toda minha vida amarrotada em sua mala.
E todos os dias em que me levanto sozinho, depois de dormir sem você ao meu lado e quando a dor dói mais doída (ou doida?) eu digo para mim mesmo, batendo na minha própria cara: não pense... não pense... apenas esqueça... e volte a dormir, mesmo que de olhos bem abertos.


Imagem de autoria desconhecida.

27.8.08

Pequeno demais


Quando retornou, estava maduro, demasiado, e já firme na vida. De longe, enquanto o carro se aproximava, bisbilhotava pela janela de ansioso. Era a mesma casa de quando partiu, com as paredes caíadas descascando, só agora mais velha. Na varanda as mesmas cadeiras de balanço de sempre, na porta a mesma cortininha de renda de sempre, no jardim as mesmas rosas selvagens de sempre. A cerca, esta estava em ruínas, com as madeiras apodrecidas e já sem o propósito ao qual se propunha.
Numa das cadeiras de balanço, uma senhora, magra, definhando a vida, olhava inerte ao longe, com os olhos azuis perdidos no longe bem longe. Os cabelos já ralos e despenteados eram a certeza que ela esperava sua hora – sem disso saber.
Aproximou-se dela, um tanto cândido, e a senhora esboçou-lhe um sorriso e disse-lhe: viu o meu Jim? o meu pequeno Jim? Quedou o olhar, alisou as mãos enrugadas, porém nada lhe disse.
Entrou na casa e tudo estava como sempre, a sala com os sofás de vime, a cristaleira, os quadros, as cortinas de renda, os relicários espalhados em cada canto, os bibelôs de porcelana. Foi uma olhada rápida, intencionava logo subir ao quarto.
Que estava como sempre: a cama arrumada, os carrinhos de madeira num canto ao chão, a escrivaninha com alguns livros em cima, o armário... tudo impecavelmente simples e limpo, como havia deixado quando partiu. Sob a cama havia uma de suas calças, das curtas, que costumava usar àquela idade.
Abaixou-se e tomou um carrinho de madeira, agora tão pequeno em suas mãos de homem, e rememorou as histórias inventadas quando brincava com ele. Sentou-se na cama e teve a impressão de estar já grande demais para ela. Tudo naquele quarto insinuava-se pequeno; até mesmo o despertador, com ponteiros tão diminutos de ver.
E foi que sentiu o quarto encolher, como se as paredes e o teto intencionassem apertá-lo e sufocá-lo, pois era adulto demais para aquele mundo que deixara, era grande demais para o mundo de sua infância, e nele já não mais cabia. Sentiu dificuldade para respirar, mas a janela também havia ficado menor... menor.
Quis sair daquele quarto, estava sufocando-se nele, estava deslocado nele – não podia mais reviver aquele mundo de há muito deixado. E ao se levantar teve de ser curvar, porque era grande demais para o quarto e ao sair precisou de se abaixar.
Fora, consentiu que aquele quarto e aquela casa haviam ficado tão pequenos que já não cabia mais neles; e já não eram mais seus. Eram do pequeno Jim que fora e por quem a senhora esperava.


Imagem de Philippe Gillotte.

16.8.08

Os robôs


Eram todos robôs, feitos de chapas de aço e com mil circuitos eletrônicos por onde passava aquilo que chamavam de vida. Tudo estritamente mecânico ou eletrônico, exceto os fluidos. Havia robôs quadrados, cilíndricos, espiralados, piramidais. E para tudo um botão ou a combinação de alguns botões: se tinham fome, bastava apertar o botão azul para findar a sensação, se estavam com frio, o botão azul emanava uma onda térmica, se queria queriam casar, o botão vermelho fazia o robô despertar para a paixão.
Um dia sem mais, um robô descobriu-se apaixonado por uma robô, sentiu-se atraído por seu corpo rombóide, seus lábios elípticos inspiravam-lhe beijos sonhados e ele se viu amando-a. Mandou-lhe poemas apaixonados – sim, os robôs também escrevem poemas – rosas, mimos feito de sua própria habilidade, tencionando conquistá-la, mas ela fugia quando o via na rua e sequer correspondia aos seus jogos do amor.
Um dia recebeu um carta; ela não o amava. No entanto, até para findar o sentimento do amor os robôs possuem um botão, que o mesmo que o aciona, e o robozinho buscou em sua casa seu manual de instruções, ou melhor, o manual de instruções dos robôs do seu modelo e número de série, para poder localizar o botão do amor e assim por fim ao sentimento do amor que tinha por aquela robozinha.
Segundo o desenho do manual, o botão ficava no compartimento às costas e era o terceiro da última fileira. Eis que ao abrir o compartimento não encontrou o botão do amor e aí ficou sabendo que apenas o seu número de série, ou seja, apenas ele, havia sido fabricado com um defeito: não possuía o botão do amor.
Ao saber que teria de dês-amar aquela robozinha do mesmo modo que passou a amá-la, sem poder desligar-se em seu botão do amor, se deu conta de que não era um robô, era humano.


Imagem: robo Ding-Bo, brinquedo dos anos 80.

10.8.08

Canarinhos


O casal de canarinhos pulava sassaricando sem muito se importar com o cárcere e nem esquivavam arredios quando a mulher aproximava-se da gaiola para alimentá-los ou trocar o jornal. Eram sua distração, quando não estava enchendo os cochos de alpiste e outras sementes, a mulher colocava-se diante deles para o ouvir o trinado agudo dos bichinhos. Às vezes um tímido piado dum deles já atraia os cuidados curiosos dela.
Os canarinhos foram novidade para os filhos, já adultos, que jamais pensaram em ver a mãe tão dedicada a eles, já que por muito tempo relutou em ter algum animal de estimação – dão muito trabalho, dizia. Mas a mulher com eles estava como se estivesse feliz outra vez e deles cuidava com cautela materna que os impedia de fugir, mesmo que isso significasse colocar alguns cadeados nas portinholas da gaiola.
Um dos filhos perguntou ao pai, como que desejando roubar uma informação mais preciosa: então a mãe comprou canarinhos? Sim, respondeu o pai, depois que você e teu irmão alçaram vôo à vida, ela comprou os bichinhos para alegrar a casa.


Imagem de autoria desconhecida.

1.8.08

Constatação


- De que sente falta?

- Da felicidade que nunca tive.





Imagem retirada da abertura de 'The 4400'.