30.4.08

Abismo


Embora pertos, era como se uma lonjura abismal abrisse em feridas entre os dois. Olhar de socorro – no canto do olho o desejo. Se falavam, eram palavras veladas, insinuando-se um ao outro em metáforas desveladas. Se achegavam, o tempo lhes era injusto: logo a interrupção. E quanto mais longe, maior era o grito do desejo e a vontade de ao menos se tocarem. Mas havia esse abismo, na pior hora: a do primeiro encontro. À despedida, sob a união da cumplicidade, o abraço foi-lhes o único alento.

Imagem de autoria desconhecida.

27.4.08

Consciência


– desista...

– ...
– sempre ocupados!
mirou o nada, olhar vazio e em solidão:
– ainda preciso deles.


Imagem: Old resting hand, de Micke Jakobsson.

25.4.08

Nua solidão


Diante do espelho tentava se enxergar, mas sua imagem nada mais era que uma projeção do seu eu, um reflexo turvo que escondia suas angústias numa máscara serena e ligeiramente feliz.
Olhar seu reflexo, era ludibriar-se que a vida era possível, de que a presente solidão era sua companheira das horas neutras da madrugada e de que o sorriso torto estampado na cara espelhava-lhe o mundo que queria que fosse.
Aquela imagem, dalgum modo desconhecido por ele, refratava seus amores sofridos, desilusões, os desejos reprimidos e a tristeza humana recolhida em si. E os dias se lhe somavam, construindo a realidade projetada numa imagem de si.
Mas houve o dia em que não viu sua imagem no espelho; não se sabe como, seus olhos voltaram pra dentro de si e ele viu-se tal qual era: angústias escondidas, amores sofridos, desejos reprimidos e tristeza recolhida. Olhar toda sua desgraça humana fez ruir sua realidade projetada, conhecer-se foi talvez sua pior consciência e o prenúncio da sua anulação: ver-se o certificou de que não era e de que nunca foi.
Quando conseguiu olhar-se no espelho novamente, percebeu que estava imerso num vazio e sua imagem pouco a pouco se desfez em nua solidão.


Imagem: Tire Swing, de Kathleen Connally.

17.4.08

O caderno dos amores traídos


Andava na rua e de repente não conseguiu trocar o passo; a perna ficou pesada demais e ao mesmo tempo dormente. Tentou outra vez e de novo sentiu a perna arrastar e travar, levou as duas mãos à coxa na intenção de forçar o movimento, porém as mãos não firmaram na perna.
Ainda assim teimou em trocar o passo e foi quando caiu embolando em si mesmo. Já não sentia os membros inferiores e também não conseguia controlar as mãos. Ao olhá-las percebeu que as mãos estavam desaparecendo, apagando lentamente, a começar pela ponta dos dedos. Fitou as pernas e viu que os pés já haviam sumido.
De lento, ganhou velocidade e o que quer que fosse aquilo avançava rápido, devorando as pernas e os braços, subindo pelo tronco, atingindo o peito. Que sufocava e apertava.
No mesmo instante, num lugar um tanto longe dali, uma mulher, de face contraída entristecida, de seu caderno dos amores vividos, apagava-o de sua existência.


Imagem de autoria desconhecida.

8.4.08

A partida


Decidiu partir. Não fez mala, nem separou roupa. Ajuntou alguns objetos e enterrou-os numa gaveta qualquer. Ainda encarou seu passado, que o observava de espreita. E percorreu cada cômodo, tocando com a ponta dos dedos as paredes e os móveis; última tentativa de recolher o pouco de vida sua espalhada pela casa. Perdeu-se olhando algumas fotografias, outras marcas do seu passado que voltava para enfrentar-se com sua vida. Aos poucos tudo virou um inquietante mausoléu. Ao abrir a porta, um corredor longo tinha sua escuridão quebrada por um ponto claro. Antes de fechá-la, apagou a luz e os seus olhos pararam de brilhar.


Imagem de autoria desconhecida.

3.4.08

Aniversário



Disse ela:


- Um ano, hein!


- ... O primeiro ano. - corrigiu ele.



Imagem: Andressa Amaral.