10.9.07

A alma não se desfaz


Inspecionava-se, naquelas manias que temos de examinar o corpo a pro-curar espinhas, cravos e outros sinais na pele e também a conferir os quilos em excesso, na verdade se os havia ganhado ou perdido e na minuciosa investigação despro-positada achou um pelinho, no entanto comprido de mais para ser inho. Estranhou. Foi-lhe curioso aparecer à altura do diafragma aquele pêlo, pois seu corpo era desnudado deles, exceto as pernas e o púbis. Caçou-o na pontinha estrema: media três dedos e tinha uma cor meio esbranquiçada, meio tom da sua própria pele. Puxou-o e, em vez de arrancá-lo ou rebentá-lo, projetou-o para fora de si em mais um dedo.
Puxou-o mais um pouco e o pêlo ainda não arrebentou, apenas saiu mais do seu corpo produzindo forte dor, uma dor contínua e aguda, como se lhe puxassem algo do umbigo e à dor acompanhou a vertigem; primeiro uma dor de cabeça tênue e depois uma sensação de tontura e torpor. Ele mais teimosamente forçou outro puxão, desta vez com mais força e em meio à dor maior sentiu o pêlo sair em quase meio metro; e aquela dor era intensa e vertiginosa que ele continuou a puxar o pêlo até sentir uma dor nunca dantes sentida quiçá por ninguém.
O pêlo enovelava-se e ele com todo empenho puxava-o, mas a dor e o estado de quase devaneio eram densos o bastante para que ele não notasse estar se desfazendo em fio; já lhe sumira a barriga e a pélvis, o púbis também e agora estava a se desmanchar as pernas. O fio foi destricotando tudo e lá na ponta do dedinho retomou o trajeto e subiu ao tronco, desfazendo o peito, a cabeça e os braços.
Tudo se desfazia naquele pêlo, as peles e camadas, os músculos e órgãos, os ossos e cartilagens, os fluidos e hormônios, cada pequena partícula virava um pouco daquele fio. Ao chão, um grande novelo desfeito: embaraçado. O fio já ia se tencionando quando atingiu o coração, mas lá parou teso e rompeu. Intacto, sobre aquele emaranhado de si mesmo, ficou seu coração.

Imagem: Forgotten, de John Shaposka.