24.2.10

Tão frio


Pensava a casa estar hermeticamente fechada, de modo que o fogo à lareira queimasse sem precisar recear que ele de repente apagasse. Mesmo quando a chama estivesse encolhida, diminuta à brasa, ele sabia que o fogo ardia e o lume irradiava pela casa.
Era aquele calor presente e aquela luz certa que conferiam a segurança necessária, como se com eles reconhecesse seu espaço de mundo e sonho, em detrimento de uma realidade sem névoas, da simplicidade que nos vara a alma.
Mas basta uma mínima fresta, uma porta entreaberta, a brisa deentrando a janela, a gaveta mal fechada, para o lume se apagar. Qualquer descuido é um átimo para o passado ressurgir, para a escuridão dominar e o calor se desmanchar.
De repente tudo fica tão frio...

Imagem de autoria desconhecida.

20.2.10

A volta da Geni


Geni partiu escorraçada; mal teve tempo de juntar a roupa do corpo e alguns pertences numa trouxa. Saiu, deixando o pouco de dignidade ao lado da calcinha no chão do quarto. Trespassou o bosque da cidade com uma horda em seu encalço: lideradas pelo bispo, as mulheres vestiram-se de preto e, em procissão e de cruzes em punho, clamaram pelo decoro. O prefeito, este dizia que a moralidade voltaria a reinar na cidade; algumas crianças ajuntavam pedras do chão.
Pobre Geni, salvo-os com sua honra, que agora lhe condenara ao exílio. Antes de se embrenhar na mata, fitou a cidade, mirou o céu; ao longe, diminuto, ia o zepelim. Mas de deu conta de que trazia em sou trouxa o milhão que lhe dera o banqueiro.
De vingança, planejou: numa noite qualquer plantou na praça da cidade, de fronte à igreja, uma estátua sua, de bronze, sentada num zepelim de mesmo material. A peça era grande o bastante para ser vista de qualquer beco estreito da cidade.
E comprou um zepelim, com o qual flutuava sobre a cidade todos os dias em ameaça: se destruíssem a estátua ou removessem-na da frente da igreja ou trocassem o templo de lugar, seria ela que abriria os dois mil orifícios e, com os dois mil canhões, faria a cidade em geleia.


Imagem de autoria desconhecida.

11.2.10

Fica comigo


Vem, fica comigo; fica esta noite e mais a outra, até as noites todas se sucederem eternas. Sabe, eu te procuro em cada pessoa que vejo nas ruas, mas em nenhuma te encontro escondida. Sei, contudo, que ainda te encontrarei oculta nalguma sombra diluída.
Vem, fica ao meu lado, empresta-me o colo e cuida de meu sono. Se quiseres, acaricia meus cabelos, enrola em teus dedos um cachinho. Às vezes sinto tuas mãos percorrer meu corpo, dedilhando nossa música em canção. Mas quando procuro teus olhos, teu olhar foge no horizonte tão longe, tão longe que mal consigo vê-lo.
Vem, dorme comigo; amanhã quero te acordar em carícias e te envolver em meus braços. Já acordei outras noites sentindo teu perfume: lembrança em minha cama da vez que nunca estiveste lá. Mas tu virás e então acordarei em tua presença.
Vem, fica comigo nem que seja por um tempo curto, dure o quanto durar, será o nosso tempo; parado para nós: eterno. Vem, que te espero, vem que te quero. Vem, me dá a mão.


Imagem de Krasimir Ganchev.

5.2.10

As dez pragas de Curitiba


Primeira – Às cinco da manhã o Senhor mandou o sol e Curitiba amanheceu com o astro a pino. E nessa hora o termômetro da Rua das Flores marcou quarenta e cinco graus e quebrou. As estátuas de Getúlio, Rui Barbosa e da Maria Polenta derreteram no pedestal; o Marechal de Ferro ficou com os olhos mergulhados no bronze liquido.
Do rio Belém subiu os odores pustulentos e os lambaris do parque Barigui retesaram na água em ebulição. Dos macacos do Passeio Público sobrou-lhes apenas a carcaça; do jacaré-do-papo-amarelo nem a história sobrou. Os pinhões estouraram nas praças em pipoca.
Os sinos da Catedral soaram em marcha fúnebre. Dom Pedro Fedalto evaporou-se na batina. Rafael Greca afogou-se na gengibirra, tarde demais. As putas da Visconde tentaram se esconder sob as marquises, mas foram vaporizadas – sobrou-lhes os vinténs da noite passada.
As gentes tiveram bernes, pústulas, uma e outra chaga. Porém eles sobreviveram, porque esta era a primeira das pragas que lhes mandaria o Senhor.

Imagem de Xavi Heredia.

4.2.10

Em ti, Curitiba


Há em ti, Curitiba, um quê indescritível. Há nas tuas gentes anônimas, solitárias e alheias a simplicidade cândida; às vezes lhes tenho raiva do provincianismo, mas quando olho suas feições caipiras, citadinas, curitibanas vejo-as e vejo-te em mim. Curitiba teu nome é meu sangue: de ti sou pinhão nascido e te faço a terra dos pinhais.
Há nas tuas ruas estreitas, trôpegas, labirínticas o emaranhado vital de minhas veias pulsantes. Há no teu gelado ar abafado de inverno aquela dose pouca, porém necessária, de vida precisa. Há em tuas árvores, meu descanso na loucura.
Há em teu retrato meu passado longínquo e meu futuro incerto. É na tua memória que monto meu presente, igual aos ladrilhos de tuas calçadas desenhadas. Curitiba, tu me desenhas, delineias meu corpo nas tuas páginas não escritas, sou de ti um personagem, quiçá reles antagonista, um boêmio de teus inferninhos obscuros.


Imagem de autoria desconhecida.