30.11.09

A hora atrasada


Já eram horas passadas, de estrelas e lua desenhadas no céu. E aquele rapaz vagueava sozinho, sob atenção curiosa da Noite que olhava seu rumo incerto, à esmo e soturno e distraído.
Perguntou-se, a Noite, como inocente criança, aonde ia aquele rapaz que nunca ardera em amor. E se compadeceu: de tristeza apagou as estrelas e minguou a lua. E ali, no breu sufocante, confabulou.
O rapaz sentiu uma forte rajada de vento, virou-se e viu ao longe alguém caminhando. E, acendendo em carreira, as estrelas voltaram a brilhar. Ela aproximou-se dele, tomou suas mãos e aconchegou-se em seu peito. Ele tocou seu rosto e beijou-a.
A Noite, sentada em seu trono, perdeu-se a observá-los – eternos apaixonados. Perdeu-se tão demasiado nas suas horas que não notou no horizonte o Dia vindo reclamar seu reinado. Quando o viu empunhando seu estandarte dourado, espalhando em raios o brilho do alvorecer, correu até ele e intercedeu para que aquelas horas continuassem paradas.
A manhã seguinte, complacente, amanheceu uma hora atrasada.


Imagem de autoria desconhecida.

25.11.09

O dia do pensamento mágico


Ele tinha de tomar uma decisão. Uma difícil decisão. Tão difícil, que este adjetivo ainda carece de peso para expressar quão decisiva era a decisão. Estava por demais indeciso. Como sempre fora. Existia nele uma ambivalência desastrosa para sua autocompreensão, um joguete dos infinitos pares binários antagônicos que o deixava com dúvidas e imerso numa confusão.
E sem perceber, sobre sua cabeça havia surgido um balão, daqueles balões de histórias em quadrinhos. Um grande balão de pensamento e dentro dele, o sinal da dúvida: a interrogação.
Sua primeira decisão foi, na verdade, uma fuga. Resolveu partir sem rumo, imaginando que a solução aparecesse de mágica. Porém, não pôde fugir às escuras. De longe as pessoas avistavam, por entre os prédios e árvores, o enorme balão e, curiosas, seguiram-no.
Primeiro seguiram seus amigos, depois os aparentados e, lá pelos últimos, um e outro desconhecido. Embora não soubessem o problema ou o cerne da dúvida, ajuntaram-se a ele. Tentou se esconder numa mata, entrou nas galerias subterrâneas, enfiou-se em becos e porões sem conseguir despistá-los. Consentiu, por fim, que o seguissem.
Caminhou até chegar a um canyon. E ali sentou-se. Aqueles pessoas todas sentaram-se também e se colocaram a observar o balão. Que ainda era de pensamento. Que ainda continha a interrogação. Que denotava hesitação. Pois ele hesitava e já tinha o rosto abatido, os olhos afundados na face, as olheiras pesadas, o olhar enuviado, o corpo rijo de tenso.
De repente ouviu: “decide-te, porque estamos aqui para apoiar-te qualquer seja tua decisão”. Ao virar-se para averiguar de quem partia a voz, viu surgir sobre a cabeça de alguém um balão. E apareceu outro, e mais outro um mais aqui e ali. Sobre todos apareceu um balão de pensamento. E dentro deles se desenharam exclamações.
Olhou todos aqueles balões e sorriu, porque nesse exato momento realizou qual decisão deveria tomar.


Imagem de autoria desconhecida.

17.11.09

Da princesa que se salvou do vilão


Conta uma história que há muito tempo, nas terras próximas ao reino das mil léguas havia outro reino e nele vivia uma princesa mui bela. Não havia homem que a ela olhasse que não cuidasse de se enamorar, por mais que rogasse a Nosso Senhor para não cair em paixão.
E essa princesa foi prometida em casamento ao herdeiro do reino do oeste, que distava demasiado longínquo. Mas era el-rey do oeste de tão alta honra e estirpe que honraria se aprazaria ao rei que sua filhasse o esposasse.
A princesa foi colocada num navio, que cruzou viagem pelos mares, rumando ao reino do oeste. Porém era de tão má índole o diabo, que invejando a felicidade da princesa e seu pai, no meio do percurso, tornou o tempo em tormentas e o mar agitado e a princesa e seus séquito temeram a morte. O diabo desviou o trajeto e levou-a para outras terras, muito mais distantes e perigosas.
Quando o mau tempo dissipou-se, o navio da princesa estava atracado numa terra que ela supôs ser uma ilha desconhecida. Chamou por um dos seus, mas não a atenderam. Haviam todos mortos. A princesa desembarcou e encontrou uma trilha; tomou o caminho e depois de perder a conta de quantas léguas caminhou encontrou uma taberna.
Após alguns dias em viagem e caminhando, a princesa tinha fome e por isso adentrou a taberna e pediu ao vilão que ali atendia por uma refeição. Enquanto ceava, reparou quão belo era o vilão, mas penalizou-se em pensamento porque estava prometida a el-rey do oeste e não cabia a uma dama comprometida olhar a outros homens. Quando terminou, fez menção de retirar-se, mas o vilão cobrou-lhe a refeição. Foi que realizou de que não trouxera consigo providências. Sem ter como pagar-lhe, o vilão sugeriu que ela o servisse de algum modo. Recusou; não cabia a damas da sua honra servir a vilania.
O vilão, porém, douto de que a princesa havia admirado sua beleza, usou de sagacidade:
“Mui bela senhora, se não me pagares haverei de ter minha honra atingida. E só poderei compensar a mim se também tiver a tua honra”, disse-lhe o vilão.
“Meu bom vilão, o que me pedes é deveras ultrajante. Jamais poderei pagar um prato de comida com minha honra que já é prometida a meu senhor el-rey do oeste”, replicou a princesa.
Ouvindo isso, o vilão avançou para cima da princesa e encurralando-a sem escapes, tomou por bolinar seu corpo e despiu-se na intenção de desonrar a donzela. Ela, sem ter a quem clamar, invocou o nome de Nosso Senhor e persignou-se. Nesta hora, o vilão urgiu em agonia e de seu corpo eriçaram pelos grossos, e seus olhos ficaram vermelhos e seus dentes pontiagudos e seus pés forcaram-se como os de um bode e seu corpo exalava enxofre e saiu disparado, porque diante do nome de Nosso Senhor nada pode o diabo.


Imagem de autoria desconhecida.

12.11.09

Gostinho bom


Estavam há três horas sentados à mesa do bar, embora tivessem trocado apenas poucas palavras. Se para um as palavras vinham à ponta da língua, para o outro o mundo havia recém se tornado denso e obscuro. Já sem saber como consolar o amigo, perguntou-lhe:

“Não vai nem ao menos tomar o whisky?”

“Não”, respondeu-lhe. “Não quero tirar o gostinho bom do último beijo que ela me deu”.



Imagem de autoria desconhecida.