31.8.07

Por onde velejar


Dois dias e o barquinho ficou pronto; arrastou-o ao mar e por um tempo preciso mediu o sopro do vento, a calmaria das águas e a rota a seguir. Não levou consigo comida, nem água, nem roupas; apenas o remo e vela; também não tinha mapa de rotas das correntes ou algum tracejado que pretendesse seguir.
Empurrou o barquinho por mais alguns metros mar adentro e quando ele já balançava pela maré pulou dentro e içou a vela, que logo se inflou. O barquinho seguiu rumo norte, avançando a passos miúdos no vasto mar azul. O continente diminuto a cada légua adiante e já impensável de retornar.
O barquinho avançou a alto-mar, lá naquelas correntes onde o mar fica azul escuro, contudo manteve-se no prumo, rumo a um porto distante, desconhecido e inimaginado. No caminho não pescou, nem se sentiu sedento, nem esmoreceu: quando o barco não avançou sozinho, remou, quando vento havia, descansou.
Acordou com mar agitado, ondas altas a querer engolir o barquinho, a tempestade em questão de pouco tempo a cair; mal conseguia se equilibrar, já não tinha mais a vela e o barquinho cambaleava em círculos, ora à direita ora à esquerda, às vezes empinando nos redemunhos da água. Agarrou-se ao barco: medo de morrer e fechou os olhos bem apertados desejando com as forças com que os apertava afugentar tormenta. Só os abriu quando percebeu o barquinho de novo no embalar do mar calmo e fitou o horizonte a sua frente: lá a tempestade voltava a se formar. Sem vela e distante do seu porto seguro, jogou-se ao mar a tentar buscar a nado águas sempre calmas.


Imagem de Vanessa Mendes Argenta.

1.8.07

O amigo que se vai


Acordou esvaziado, como lhe ocorria quando se despedia dum amigo que não mais veria. E era exatamente isso: havia se despedido daquele que se achegou de repente e agora partia pois sua hora de ir chegou. O amigo aparece à noite, enquanto ele dormia, surgiu meio ao sonho e a sonolência do acordar e durante o tempo que juntos viveram, ficou ao seu lado em todas as horas.
De início uma conversa de apresentação, mas apenas ele interrogou o achegado; nos dias que se seguiram, descobriu um causo a mais, um detalhe escondido, um trauma embolado. Logo depois o novo amigo calou-se e ficou a espreita-lhe: agora era consigo, no trabalho só seu.
Não notou o amigo indo embora ao longe, passo novo a cada dia; quando percebeu ele já tinha ido. Foi exatamente no dia do ponto final. Na manhã seguinte, ele acordou esvaziado e viu o amigo nas páginas escritas sobre sua escrivaninha.


Imagem de Aisha e Gilles.