26.5.08

Suas palavras


Quando parou para tomar fôlego, aproximou-se um velho que se sentou ao seu lado; trazia em suas mãos uma caderneta de capa de couro, já velha, com as pontas meio puídas. Do bolso da camisa retirou um lápis algumas vezes apontado com a ponta bem feita. O velho abriu a caderneta anotou a data na primeira folha em branco seguinte às escritas e encarou-o. Fitou seu olhar vago, sua face triste e abatida, seu corpo tenso e lhe perguntou: que faz aqui?
Ele mergulhou o olhar no horizonte, deixou os olhos marejarem de lágrimas, e falou meio engasgando: esqueço... Deu um breve suspiro e o velho perguntou-lhe de novo: como veio até aqui? Ele suspirou, inspirou fundo numa tentativa de despistar o choro da garganta e disse: vim andando. Veio andando umas boas léguas e meia.
O velho então pediu: escreve aqui no caderno. Ele tomou a caderneta na mão, e por longas linhas escreveu o que sentia e como sentia e porque sentia e quanto sentia, escreveu tentando vencer a dor dos pés cansados e do corpo estafado. Escreveu em linhas tortas e letra garranchada, difícil firmar o pulso.
O velho leu cada frase, meditou cada palavra e disse-lhe: não continue... volte; apenas volte. E antes dele tomar o rumo da volta, o velho rasgou a folha escrita por ele e entregando-lhe completou: sãos suas palavras, deve levá-las consigo.


Imagem retirada de "The line between".

16.5.08

Recorte de jornal


As pessoas na rua a olhavam; com olhar curioso porque algo nela estava diferente, muito embora ela mesma não se sentisse diferente naquele dia. Ou melhor, ela sentia-se um tanto melancólica, nostálgica, até mesmo um pouco absorta, porém não deprimida; e aquele dia era tão-só um dia a mais de trabalho.
Mas foi quando se olhava no espelho do elevador, conferindo se a roupa estava impecável, que descobriu o motivo dos olhares: estava em preto-e-branco. Enquanto o mundo todo à sua volta insinuava seus matizes e suas infinitas tonalidades coloridas, sua pele, seu cabelo, seu lábio, seu olhar e suas roupas oscilavam nas diferentes graduações do cinza.
Ficou um tanto desconcertada, no entanto quê podia fazer? Tentou retocar o batom; sem efeito: seus lábios apenas ganharam um contorno mais definido em tom cinza escurecido. Foi ao banheiro, lavou o rosto, mas na pele a mesma palidez acinzentada.
Dirigiu-se à sua sala, porém sentia-se esvaziada a ponto de sequer conseguir dimensionar o que se passava. E quando tocou a cadeira, o estofado perdeu a cor e assim com cada objeto que tocou: todas aquelas cores vivas, luminosas, vibrantes viraram um punhado de cinzas médios, claros e escuros, indo da plenitude completa das cores até a ausência delas.
Em desespero, chamou pela colega ao lado. Esta mulher até virou-se em sua direção, mas perdeu o olhar ao longe, como se o seu chamado de ajuda fosse apenas um sussurro incompreensível do vento, como se ela fosse alguém congelado no tempo passado. Tão igual, tão igual à moça do recorte de jornal da fundação da empresa emoldurado na parede.



Imagem de autoria desconhecida.

11.5.08

Do bem


– e se a polícia acha que nós somos bandidos?
– eles não vão pensar...
– mas se eles pensam, pai?
– não somos bandidos.
– a gente é do bem?
– é... a gente é do bem.
– os bandidos é que são do mal, né?
– sim.
– mas se a polícia pensa que a gente é mal, a gente vira bandido?
– não, filho... não somos bandidos.
– mas e se a polícia pensa que somos?
– eles não pensam isso da gente.
– por que a gente é do bem, né pai?
– é... porque a gente é do bem.

Imagem de autoria desconhecida.

8.5.08

Vitalidade


Acordou descansada, sentindo-se mais jovem, numa vitalidade há anos esquecida; e animada para caminhada no parque ao sol ainda leve da manhã. Não tinha idéia de quantos anos fazia que acordava com o sol a pino do meio-dia, estafada mesmo tendo dormido por horas e horas.
Ficou em dúvida se corria ou caminhava, mas a vontade de algo mais pesado incentivou-a a correr; começou devagar, mas logo aumentou o ritmo como se preparasse para uma competição. Não sentia cansar: quanto mais corria, mais queria continuar e sentiu que não queria apenas correr, mas desejava também pular, dançar, soquear o ar, dar cambalhotas, rolar no gramado do parque.
Sobretudo, porém, corria feito criança serelepe, esquecendo-se do mundo e imergindo na sua pueril brincadeira da manhã de domingo. E pulava e corria e girava cambalhotas e subia em árvore e dançava feito criança que era; e de fato era criança.
Parou apenas para se refrescar com um picolé, já matutando as próximas brincadeiras que saciaria pelo parque. Foi quando viu uma senhora se aproximar e falar uns bá bá bá bu bu bu, que nada compreendeu; fitou aquela senhora tentando compreender se louca era ou estava lhe mangando. A velha, antes de ir-se, soltou um riso curto, divertindo-se em ver aquele bebê de pouco mais de um ano de idade lambuzar-se com o picolé.


Imagem: There is always hope, de FriskyPics.

4.5.08

Como você me dói


Não de vez em quando... quase sempre. Dói na tua presença e na tua ausência, dói no amor que por você sinto e no ódio que lhe tenho, dói no acertado e no errado. Dói duma dor doída, profunda, aguda e nauseante. Você me dói desse teu jeito falso, desse teu jeito despreocupado, desse teu jeito inocente, desse teu jeito pueril; desse jeito que me consome e me faz mal e me vicia. Você me dói... talvez saiba disso, me dói a ponto de eu me doer de mim, por você.


Imagem de: chromogenic.net