29.12.07

Lábios amortecidos


O beijo fez a curva, vem que vem, a trote rápido, galopando feito corisco mato adentro; engata a primeira, põe lenha na fogueira que vem a serra; a caldeira ofega, geme que até parece que quer explodir. E na subida, quase descarrilando, encontra os lábios dela e sem volteios pára na estação por uns instantes, sem arrefecer volta a deslizar sublime seu corpo quente.
E suam e se enrolam e se embolam um no outro, exploram-se como caçadores da arca perdida em busca do santo graal. Se encaixam e seguem rumo juntos, no mesmo ritmo e mesmo trote, embalados pelos sons grunhidos ao ouvido do outro.
Deslizam noite adentro, perdidos no breu sem rota ou destino certo: travessia rumo ao paraíso cá na terra, iluminados à luz da chama acesa lá no escondido do olhar de cada um. Ele a domina e ela deixa ser dominada, mas também explora à noite seu corpo forte, o quer todo para si e por isso prende-se nele, agarra-se aos seus braços, arranha suas costas.
Rolam encosta abaixo, rolam defronte ao mar da tranqüilidade, embolam-se e já não é mais possível vê-los dois, são um, apenas um. Ele a toma pela mão e a guia noite sem-fim ao descampado, onde deitados, ele a leva para outros mundos distantes, a eleva às estrelas, cálidas e cintilantes no escuro celeste. Ela se deixa levar, fecha os olhos e viaja àquela fantasia, são suas todas as estrelas que se multiplicam, explodem e se apagam.
E o beijo vem, subindo, já avistando o ponto de chegada e por isso cede velocidade, avança compassado, deixando rastro pelo trajeto, primeiro circula o recôncavo da barriga, escala os peitos, subindo e descendo espiralado, atinge o pescoço, cada recôndito mais inalcançável, serpenteando o traçado e por fim encontra seus lábios, amortecidos de amor.


Imagem: Passion, de Nora Patrich.

16.12.07

O escritor


Era um escritor.
De títulos; apenas isto.
Títulos originalíssimos, colagens astutas, ditados subvertidos, trocadilhos inteligentes.
Títulos que numa prateleira chamaria qualquer leitor desatento, quase um clamor persuasivo de “leia-me”.
Títulos que invejariam nobeis, pulitzers, camões e jabutis.
Porém, nada mais: nenhuma história, nenhum personagem, nenhuma invenção literária, nenhuma neo-estética lingüística. Sequer o ponto e a vírgula.
Era um escritor de títulos.
Tão-só títulos.


Imagem de autoria desconhecida.

15.12.07

Chove


Chove. Duma chuva grossa e pegajosa e lhe é difícil manter os olhos abertos, as pálpebras pesam e a água as deixa mais mesadas e quando consegue abri-los é como se ela entrasse nos olhos, desfocando as imagens e irritando a visão. Também respirar, o ar tornou-se demasiado úmido e a chuva invade os pulmões, impedindo-o de inspirar um pouco de ar. Tampouco conseguiria andar, há um lodo lamacento que lhe suga terra adentro igual areia movediça.
A chuva começa a formar veios na terra, tecendo meandros pelo terreno pedregoso, escoando aquele aguaceiro encosta abaixo. Já não sabe mais o que é água caindo e água caída, tudo parece um infindável véu d’água bailando de cima abaixo e de baixo acima. Não havia abrigo para si, tampouco o procurou, havia desejado de muito aquela chuva e agora se entregava a ela.
A chuva foi desmanchando-o, levando consigo tudo que havia dele, feito pingo de tinta sumindo na correnteza dum rio. Não se afogou, apenas deixou a chuva leva-lo, transportando-o para um outro lugar, distante daquele ambiente hostil, permitiu à chuva minguar a última réstia de esperança que em si havia, porque chega uma hora em que os minutos se somam dobrados e as esperanças afogam-se à deriva na inundação da primeira tormenta de verão.
E foi o que fez, esperou parcimoniosamente a primeira e abandonou-se a ela, afogando não só suas esperanças enfraquecidas mas também seus sonhos destruídos. Entregou-se à chuva, pois sabia que essa chuva era um último sinal, tal um choro, contudo um choro muito de tempo guardado, que quando vem rompe as comportas e carrega consigo o que tromba pelo caminho, mas que carrega aquela terra de muito dantes pisada para outros solos virgens. Ali, naquela tão-só paisagem, ninguém passa, ninguém corre da chuva, ninguém corre na chuva, é apenas a chuva caindo tão-só, escoando-o pelos veios em que se fez rio diminuto.


Imagem: autoria desconhecida.

9.12.07

Olhar frio


Da infância poucas lembranças guardamos; como se o Senhor das Memórias tomasse a si nossas lembranças da meninice, se bem que roubo não pode ser, pois este mesmo Senhor das Memórias nos devolve algumas rememorações que vem sem propósitos aparentes, tal lampejos repentinos, imagens fugazes que no segundo seguinte desaparecem.
Viveu toda a sua infância numa grande cidade, da qual nunca se esqueceu e de todos os seus amigos guardou uma em especial. Eram irmãos, mais irmãos que se tivessem o mesmo pai e a mesma mãe; conviveram juntos até que ele completou dezoito anos e foi-se, porque a todos chega a hora de partir, naquela única viagem que se faz sem saber destino e muitas vezes sem saber se ela se concluirá. Uma vez quando criança, um detalhe lhe chamou a atenção: brincavam ele e a amiga na casa dela de um pouco de tudo: gude, baralho, jogos de tabuleiro, de pegar... Enquanto jogavam gude, numa de suas jogadas, a bolinha rolou até a sala ao lado, à direita. Correu apanhá-la. Na sala escura, pouco iluminada pela luz de um abajur, uma senhora, velha, mas não mais que quarenta e cinco anos, acabara de ter um escalda-pés e enxugava-os; ela pousou os pés sobre o tapete, onde a luz iluminava com suficiência e ele reparou: no pé esquerdo faltava o dedo mindinho.
Anos mais tarde retornou, porque algumas dessas viagens são assim, cíclicas e assim sem muito entender os porquês, retornou por dias breves; já era homem feito, estudado e crescido, mas sentia que alguma coisa ainda o ligava àquela cidade e à sua meninice lá deixada. Queria ver a amiga, quiçá a única de suas pontes com esse cheiro do passado; marcou um encontro com ela para dali a dois dias.
No dia, preparou-se com muito asseio. Chegou na casa dela quinze minutos atrasado e foi recebido por um senhor que reconheceu ser o pai dela e foi introduzido na mesma sala onde costumavam jogar gude. Ela delongou-se alguns minutos para descer. Durante esse tempo, ouviu o homem gritar e ordenar afazeres a uma pessoa na cozinha, que ficava à esquerda. Quando ela apareceu, deram um grande e demorado abraço e repararam um o outro; reconheceram-se de imediato. Eram os mesmos amigos de quando crianças, só que agora adultos; mas havia um quê estranho nela; parecia que um procurava algo no outro, algo da infância. Então escutou o barulho de um balde caindo ao chão na cozinha. Impulsivamente dirigiu o olhar e viu, pela porta, uma escova no piso. Viu uma mulher se ajoelhar e pegar a escova para esfregar o chão. Era uma senhora, velhinha, mas não mais que sessenta e cinco anos, descalça e no seu pé faltava o dedo mindinho. Encararam-se. Era isso: o olhar frio. Em choque e desespero, num choro quase compulsivo, saiu correndo da casa.


Imagem: Porta, de António Ferra.

3.12.07

Castelinho de areia


Era criança e, como toda criança, tinha uma família e, como toda a família, participavam de festas de fim de ano e, como todo fim de ano, viajavam à praia e, como em toda a praia, havia crianças brincando de construir castelo de areia e ele era uma dessas crianças. Nem se lembrava das incansáveis idas e vindas de lá para cá e de cá para lá a trazer incansável o baldinho cheio de areia.
Havia uma alegria declarada, alegria de criança que vê o simples empreendimento duma singela brincadeira tomar forma e viço, e trazer à tona as memórias o tempo de criança era-lhe mais que uma alegria, uma felicidade, pois era essa felicidade da meninice, do tempo das idades de construir castelinhos de areia, a fuga das durezas do tempo que a vida desenrola distante da infância.
Deixava-se perder nos recônditos das lembranças, inclusive transportado para lá, podia sentir o cheio da areia molhada surgindo enquanto cavava o fosso, a areia grudando em suas pernas e até a pequena pinçada que certa vez lhe atacou um siri e nessa hora seu dedo latejou de dor, lá e aqui nas lembranças.
Desta vez, a lembrança adiantou alguns dias: estava tão perdido terminando a última e mais alta torre do castelo quando ouviu o badalar de sinos ao longe e em pouco tempo as crianças na orla se alvoroçaram; ele mirou a direção de onde vinha o barulho e viu o papai-noel cercado de meninos e meninas, que ganhavam dele balas e pirulitos e então lhe veio à mente: era natal! e sem querer descuidou do castelo uma onda forte invadiu e encheu o fosso do entorno e trouxe abaixo todo o castelo, esfacelando num golpe seco a torre ainda inacabada, que se dissolveu n’água – em vão quis ampará-la.
Chorou, como toda a criança chora diante de revés, e despertou das lembranças com as lágrimas escorrendo-lhe no rosto e lhe abateu a angústia de quem deixa a porta da memória aberta e não percebe a entrada dos invasores indesejados. E despertado olhou ao seu redor e viu que era natal e desatou num choro compulso, tentou secar a face com suas mãos tremulentas e velhas, mas não foi possível: por entre seus dedos ainda escorria alguns grãos de areia.


Imagem de D Sallary.

18.11.07

Navegar a barquinhos de papel


No princípio havia apenas o mar, um imenso vasto mar azul e como todo mar azul, este mar era calmo e também agitado, cujas calmarias e tormentas variavam co’as correntes que movimentavam as águas daquele mar. O mar era tão azul, dum azul forte, até meio enegrecido em suas profundezas, mas de águas superficiais claras; como se o claro e o escuro fossem separados por algo naquele mar.
Tomou uma folha de papel, branca, sem traços ou margens, e cuidadosamente a dobrou com suas mãos hábeis e ágeis e em pouco tempo havia feito um barquinho de papel. Colocou-o a navegar, um ligeiro sopro o fez tomar rumo e velocidade e o barquinho de papel foi-se pelo vasto mar azul. Tomou outra folha e fez outro barquinho, tomou mais uma folha e fez mais um barquinho e em pouco tempo já havia tantos barquinhos naquele mar azul – impossível contá-los.
Nenhum barquinho regressava, todos navegavam em seu rumo próprio, retilíneos e tortuosos, uns mais rápidos, outros muito vagaroso; alguns as correntezas levaram em velocidade, a outros o único impulso foi o sopro que os pôs a navegar e houve uns poucos que empacaram no caminho e ficaram navegando em círculos. E aquele imenso mar azul foi-se pontilhando de branco.
Longe ou perto do cais, os barquinhos de papel se encharcavam de água, os mais fracos navegavam poucas milhas e logo naufragavam, outros iam afundando bem lentamente e quando já estavam totalmente submersos, distavam muitas e muitas milhas do ponto de partida. Mas o mar azul não chegou a ficar sem barcos a navegar-lhe, porque para cada barquinho naufragado, dez eram colocados a navegar.
E foi quando olhava aquele vasto mar azul pontilhado de branco que notou dois barquinhos em rota de colisão; que aconteceria?, perguntou-se, afundariam juntos? um seguiria seu rumo enquanto o outro imergiria devagar?; pouco antes de se colidirem de frente, os dois barquinhos se emparelharam e seguiram navegando lado a lado, um protegendo o outro quando alguma tormenta lhes lançava ondas gigantescas ou quando um redemoinho ameaçava sugá-los.
No entanto, cada barquinho era um barquinho e um deles começou a absorver mais água que o outro e dava sinais de que iria afundar antes, o outro barquinho tentou regressar ao seu encontro, mas o caminho andado não podia ser retomado e os dois barquinhos começaram a se afastar um do outro, se separando. Ele observou a cena e ponderou: aproximou seu rosto do barquinho que estava naufragando e assoprou sobre ele até emparelhá-los novamente, mas o barquinho já absorvera água demais e não delongou muito a afundar. O outro barquinho, sabe-se lá como, conseguiu atracar; atracou em alto mar, naquele vasto mar azul e ali ficou até absorver água suficiente para afundar ao lado do barquinho que já tinha naufragado.




Imagem de Socketless.

5.11.07

Passaporte único da eterna viagem


Um passeio. Leve deslizar pelas estradas curvas no embalo da velocidade e dos ventos tocando o corpo como num flutuar sem-fim vagueando pelo anil cerúleo daquelas horas únicas, neutras e paradas. Lento caminhar permeando subidas e descidas, trazendo os longes para perto, avistando-os pequenino; diminuto o tão desejado destino.
Assim imergiu numa viagem quiçá insana, viagem de devaneios daquelas que se fecha os olhos para desfrutar cada passo avançado, cada novo constante avançar co’as paisagens todas advindas, paisagens fiéis às sonhadas concomitantes ao passear d’agora.
Feito ave avoando no sertão, feito peixe vencendo as correntezas, feito bicho do mato correndo veloz em campo aberto, viajou; passeou por aqueles caminhos tracejados sem planos prévios num tempo galopante a si mas retardo aos olhares alheios, porque é assim essas viagens de devaneios: tempo indecifrável, incabível de ser medido e paradoxalmente rápido e demorado para ser passado.
Os olhos fechados eram por causa do vento na face e também para sonhar, há-se a necessidade de sonhar de olhos fechados para que as fantasias não se nos escapem das retinas nem nos sejam surrupiadas levianamente. E assim não via que ela também rumava ao seu encontro e também imergida na mesma tresloucada travessia.
Mas não foi preciso despertar para que um o outro percebesse ou notasse sua presença; as linhas as conduziram e feito efeito espelhado as duas mãos, transitando pelo corpo do outro, se encontraram na altura do coração e ali se entrelaçaram, como ponte área e os dois seguiram juntos o passeio para um rumo outro, sem destino de chegada, sem previsão de conclusão, sem tempo limitado a gastar... só o passear das mãos de um no corpo do outro, ele devotando a ela carinhos e bitoquinhas na sua pele: piquenique ao longo do passei; e ela retribuindo-lhe beijos molhados: único passaporte da eterna viagem.


Imagem de autoria desconhecida.

29.10.07

A crucificação do santo padre


Quase se lhe rasgaram as mãos, que gotejavam sangue e também doloridas; da mão direita não conseguiu despregar o prego, a força foi assim muito intensa que lhe ficou na palma um pequeno buraco, donde se viam músculos, ossos, artérias e veias. Com a mão direita livre, tirou a muitos custos o prego da mão esquerda, ferindo os dedos também em carne viva e o sangue escorrendo em filete pelo braço.
Ainda faltava o prego dos pés, que demorou mais a tirá-los pois era maior que os das mãos e a dor igualmente mais intensa. Antes de descer da cruz, retirou da madeira o prego que ficara nela cravado; esse parecia ter sido pregado com mais vontade – não à toa o ferimento que lhe provocou na mão direita – e levou os três cravos consigo.
Desceu da cruz e ao olhar toda a vastidão da basílica em penumbra viu o santo padre ajoelhado num genuflexório rente às escadas do altar. Aproximou-se, mas não foi notado. O santo padre rezava em meditação, absorto e de olhos cerrados; tocou-lhe a mãos com sua mão direita ferida.
O santo padre despertou assustado, costuma ali estar só, e mais se espantou ao vê-lo diante de si. Disse ao santo padre: esta não é a minha igreja, minha igreja é a do perdão não a condenação, minha igreja é a do acolhimento não a da exclusão, minha igreja é a da humildade não a da humilhação, minha igreja a do respeito a meu pai não a do temor ao diabo, minha igreja é para a glória de deus não para a glória dos homens; e continuou: em verdade em verdade vos digo: não mais o que ligares ou desligares na terra será ligado ou desligado no céu.
Fitou o santo padre nos olhos e disse: nesta tua igreja que construístes na terra és tu quem deve estar crucificado; abriu as mãos do santo padre e depositou nas suas palmas os três pregos usados para lhe crucificar e partiu, sumindo na penumbra da basílica.


Imagem de Vincent Vanderveken.

17.10.07

Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte


O cheiro da morte era perceptível ali, seu pisar fazia levantar um pó fino que impregnava nos seus poros e adentrava seu nariz; era difícil respirar. Aquele pó denso, forte trazia o cheiro característico da morte, cheiro só sentido quando ela nos rodeia. A terra estava seca, estéril após tanta vida morta sobre si; as carcaças e esqueletos semi-enterrados provavam que ali era o lugar da morte.
Mas a morte ali não estava, o lugar era vazio, um imenso vale decrépito onde a morte apenas havia. Mesmo sem a luz do sol, não havia escuridão... era tão-só a ausência de luz, como ausência de vento, ausência de calor – ausência apenas. Também não havia cor, era um cinza amarronzado, cor de pó, cor do pó das infinitas peles e dos infinitos corpos que ali jazeram. Havia ali um som, um grunhido abafado, lamurioso, mas era um som cego, surdo, que ele pensava ser o som do silêncio.
Cada vez que ele cutucava a terra com a bengala, fazia exalar o cheiro da morte; o golpe da bengala na terra era igualmente abafado, como se ali fosse proibido a propagação de qualquer tipo de som.
Vagou por aquele vale sentindo-se tão morto quando a morte presente no local; de fato estava morto... só morte havia ali. E já no final do vale, quando uma enorme pedreira erguia-se à frente, feriu a terra mais uma vez e dessa vez sentiu a terra fofa e um cheiro úmido exalado... olhou para o chão curioso e viu um pequeno dente-de-leão. Agachou-se. E sem arrancá-lo assoprou-o; ainda que andasse no vale da sombra da morte, era a vida que ali vingaria.



Imagem: Dente-de-leão, de Arthur Netto.

5.10.07

Ao teu ouvido


Queria dizer te amo, olhar em teus olhos e sentir o gosto dos teus lábios, mas tu sabes: falta-me a coragem. Há esse medo tolo de tornar real meus sonhos contigo, talvez porque neles tu seja eternamente meu e há também algo que não sei, que subverte minhas razões quando tu silencias minhas voz, quando tu estás presente em minhas ausências.
Um dia sonhei que tocava tua pele, acariciava teu rosto e depois te despia para dedicar meus beijos a cada porção do teu corpo, deste templo a que me curvo em devoção e entrego em sacrifício.
Tu não sabes, talvez jamais lhe fantasie as idéias de que tenho amor por ti, de que sonho contigo em meus braços, para que assim te percas em meus abraços e eu me embole em teu corpo ao ponto de confundirmos.
Sinto teu cheiro na tua saudade, ouço tua voz nas minhas lembranças de ti, vejo-te espreitar-me por detrás das árvores, percebo tua presença no lado vazio da cama todas as manhãs. Mas quando te toco, tu te esvais dissoluto na poeira ébria do amanhecer.
És tu sim que amo, és tu que quero na ponta extrema da minha vida, para olhar por sobre os ombros e ver o caminho vencido ao teu lado. Mas tenho medo, medo da tua rejeição, medo que o encanto se quebre, medo de que teu espírito se torne um fantasma.
Eu te amo, não me canso de dizer-me isso, só não sei quando irei conseguir olhar nos teus olhos, mesmo que hipnotizado, ou dizer sussurrando ao teu ouvido, que te amo.


Imagem de autoria desconhecida.

10.9.07

A alma não se desfaz


Inspecionava-se, naquelas manias que temos de examinar o corpo a pro-curar espinhas, cravos e outros sinais na pele e também a conferir os quilos em excesso, na verdade se os havia ganhado ou perdido e na minuciosa investigação despro-positada achou um pelinho, no entanto comprido de mais para ser inho. Estranhou. Foi-lhe curioso aparecer à altura do diafragma aquele pêlo, pois seu corpo era desnudado deles, exceto as pernas e o púbis. Caçou-o na pontinha estrema: media três dedos e tinha uma cor meio esbranquiçada, meio tom da sua própria pele. Puxou-o e, em vez de arrancá-lo ou rebentá-lo, projetou-o para fora de si em mais um dedo.
Puxou-o mais um pouco e o pêlo ainda não arrebentou, apenas saiu mais do seu corpo produzindo forte dor, uma dor contínua e aguda, como se lhe puxassem algo do umbigo e à dor acompanhou a vertigem; primeiro uma dor de cabeça tênue e depois uma sensação de tontura e torpor. Ele mais teimosamente forçou outro puxão, desta vez com mais força e em meio à dor maior sentiu o pêlo sair em quase meio metro; e aquela dor era intensa e vertiginosa que ele continuou a puxar o pêlo até sentir uma dor nunca dantes sentida quiçá por ninguém.
O pêlo enovelava-se e ele com todo empenho puxava-o, mas a dor e o estado de quase devaneio eram densos o bastante para que ele não notasse estar se desfazendo em fio; já lhe sumira a barriga e a pélvis, o púbis também e agora estava a se desmanchar as pernas. O fio foi destricotando tudo e lá na ponta do dedinho retomou o trajeto e subiu ao tronco, desfazendo o peito, a cabeça e os braços.
Tudo se desfazia naquele pêlo, as peles e camadas, os músculos e órgãos, os ossos e cartilagens, os fluidos e hormônios, cada pequena partícula virava um pouco daquele fio. Ao chão, um grande novelo desfeito: embaraçado. O fio já ia se tencionando quando atingiu o coração, mas lá parou teso e rompeu. Intacto, sobre aquele emaranhado de si mesmo, ficou seu coração.

Imagem: Forgotten, de John Shaposka.

31.8.07

Por onde velejar


Dois dias e o barquinho ficou pronto; arrastou-o ao mar e por um tempo preciso mediu o sopro do vento, a calmaria das águas e a rota a seguir. Não levou consigo comida, nem água, nem roupas; apenas o remo e vela; também não tinha mapa de rotas das correntes ou algum tracejado que pretendesse seguir.
Empurrou o barquinho por mais alguns metros mar adentro e quando ele já balançava pela maré pulou dentro e içou a vela, que logo se inflou. O barquinho seguiu rumo norte, avançando a passos miúdos no vasto mar azul. O continente diminuto a cada légua adiante e já impensável de retornar.
O barquinho avançou a alto-mar, lá naquelas correntes onde o mar fica azul escuro, contudo manteve-se no prumo, rumo a um porto distante, desconhecido e inimaginado. No caminho não pescou, nem se sentiu sedento, nem esmoreceu: quando o barco não avançou sozinho, remou, quando vento havia, descansou.
Acordou com mar agitado, ondas altas a querer engolir o barquinho, a tempestade em questão de pouco tempo a cair; mal conseguia se equilibrar, já não tinha mais a vela e o barquinho cambaleava em círculos, ora à direita ora à esquerda, às vezes empinando nos redemunhos da água. Agarrou-se ao barco: medo de morrer e fechou os olhos bem apertados desejando com as forças com que os apertava afugentar tormenta. Só os abriu quando percebeu o barquinho de novo no embalar do mar calmo e fitou o horizonte a sua frente: lá a tempestade voltava a se formar. Sem vela e distante do seu porto seguro, jogou-se ao mar a tentar buscar a nado águas sempre calmas.


Imagem de Vanessa Mendes Argenta.

1.8.07

O amigo que se vai


Acordou esvaziado, como lhe ocorria quando se despedia dum amigo que não mais veria. E era exatamente isso: havia se despedido daquele que se achegou de repente e agora partia pois sua hora de ir chegou. O amigo aparece à noite, enquanto ele dormia, surgiu meio ao sonho e a sonolência do acordar e durante o tempo que juntos viveram, ficou ao seu lado em todas as horas.
De início uma conversa de apresentação, mas apenas ele interrogou o achegado; nos dias que se seguiram, descobriu um causo a mais, um detalhe escondido, um trauma embolado. Logo depois o novo amigo calou-se e ficou a espreita-lhe: agora era consigo, no trabalho só seu.
Não notou o amigo indo embora ao longe, passo novo a cada dia; quando percebeu ele já tinha ido. Foi exatamente no dia do ponto final. Na manhã seguinte, ele acordou esvaziado e viu o amigo nas páginas escritas sobre sua escrivaninha.


Imagem de Aisha e Gilles.

28.7.07

Casa nova

Bem-vindos à casa nova.
A partir de hoje, sempre textos novos acompanhados das imagens.
O endereço do blogger.com.br ficará habilitado pra nao perder o arquivo.

Fuga de si


Havia uma angústia, um ar seco, sufocante, denso, poeirento... e a angústia se lhe era maior ao gritar e sentir a voz entalar enviesada na garganta ecoando o grito de socorro dentro de si. E era assim: fugia das multidões, pávido de se ver refletido nalguns rostos transeuntes, se ausentava dessa horda histérica de iguais a si mesmo, numa falsa intenção de ausentar-se de si, anulava-se nas horas inconscientes praguejando contra sua incontrolável consciência. Um processo de fuga, como se fugindo dos outros conseguisse fugir de si – entender aqueles humanos no seu mundo era não entender a si e se buscava minimamente olhar-se no espelho e poder responder suas perguntas. Assim, nessas horas de incompreensão muda é que entrava em si, introspectivo e procurava pelo seu perdido nalgum canto lúgubre. Perdido nesse labirinto vinha-lhe a vontade de gritar, um calor sonoro que lhe subia o corpo, desde os poros da pele, mas a passagem travada lhe impedia de pôr o grito fora e aquele mal inaudível lhe queimava o âmago, lhe doía a alma e lhe angustiava tirando-lhe o rubor da face e a vida dos olhos.


Imagem: Fuga, de Henrique Augusto.

A esquecer-se da vida


No dia seguinte não fez o de-comer, nem o desjejum ou pequeno-almoço, nem as outras refeições do dia, sequer uma água-e-sal ou a torrada esquecida no fundo do pote de torradas. Não aderiu àquelas pirações de greve de fome; iniciava, pois seu intento de esquecer-se da vida. E, como conseqüência da barriga vazia, não fez as necessidades fisiológicas normais a um não-birrento. Deitado na cama, decidiu não mais andar e não mais andou, como também decidiu não mais mexer braços, mãos e pés e assim não mais mexeu braços, mãos e pés. Fechou os olhos e não mais os abriu, desistindo de ver as coisas todas tolas que seus olhos sem algum senso crítico lhe projetavam nas retinas.
Dormiu e não mais acordou; deixou-se ficar perdido naqueles sonhos ou dormências, mas ainda tinha vivo os pensamentos, as angústias e aquelas coisas todas encaixoladas, impregnadas tão encalacradamente.
Como último passo, decidiu não mais pensar e sua mente entrou num estado híbrido de inércia e hibernação, ficou-lhe apenas um fundo preto às idéias, sem sequer aquele fio brilhante apontando a cessão das atividades vitais. E assim esqueceu-se da vida e ficou assim até que a vida esqueceu-se dele.


Imagem: Vida, de Rodolfo Franco.

Eternamente divagar


Mire e aperceba, que lá, a algumas léguas e meia daqui, num canto mais longe que minhas idéias de lonjura desenham, lá nos arrabaldes donde nem conheço, há um moço, moço-rapaz dos olhos acastanhados. Parece que ele é meio amalucado, feito doido, sabe?, mas sei bem que tem nele quê de estranho, só que um quê de estranho de bom, quê de estranho que me transmite alegria e essa paz calma que sinto assim aqui dentro. As vontades é de estar lá, com ele, perdido na louca fantasia de sentir seu lábio num beijo roubado, só quer num beijo roubado e depois fugido, pra que esse moço-rapaz embeste de tomar a si de volta o que lhe roubei. As vontades também é de brincar com seu corpo, sentir de frio a quente a cada passo avançado dos meus dedos, e assim caminhando por entre vales e morros, florestas e pampas findar a viagem no paraíso cá na terra. Já encaxolei que um dia embesto de romper as léguas; um dia desses me arranco daqui, pé na rua rumo ao norte, coração guia de minha de viagem. Mas quero chegar de mansinho, assim sorrateiro, nem barulho nem sobra nem cheiro; na surdina, tapar seus olhos e trazer seus lábios ao meus... mire que já estou sim nem sei como dizer como. E ao lado dele, o rodopiar dos dias quero bem lento pra que um dia seja dois e meu passar com ele, dobrado; quero tudo errado pra com ele fazer acertado e o tempo assim parado, pra com as idéias nos beijos dele eternamente divagar.


Imagem de autoria desconhecida.

Asozinhado


Quando levou a primeira rasteira do Dia, às nove e meia da manhã - não, ele não caiu por distração, de fato o Dia, numa certa traquinagem, resolveu lhe derrubar logo do início da manhã - decidiu viajar a seu mundo, um lugar deserto, colorido com suas próprias alegorias fabularias. Era-lhe simples, bastava com a mão abrir a fenda no espaço e passar pro lado de lá sorrateiramente, sem dar motivos ou permitir que o vissem migrar. Lá dormia durante uma parte do tempo, tempo que corria mais rápido, numa velocidade ideal para fazer o dia passar a galopes e assim enterrá-lo em definitivo no mausoléu do passado. Outra parte do tempo, ficava a conversar consigo, mas o seu eu desatinado, incompreensível e inacessível. Ali vivia histórias de reis e nobres, histórias de prêmios ganhados, de amor desejados, ali era o que era em sua essência. O asozinhar-se lhe permitia ao menos curar-se do tombo inesperado da manhã. Ali ficou um tempo indeterminado a nós, um tempo em que pôde resetar sua memória e alegrar-se a ponto de poder retornar ao mundo, mesmo desejando ser só eternamente.


Imagem de autoria desconhecida.

Medo


Enfim cá estamos, não? e já atrasados. Sente e te acalma, pois fugir dessa conversa não dá mais. De fato nós fugimos um do outro e topamos assim aqui num momento em que não esperávamos, sim estamos protelando, embora não saiba eu que queres de mim. Quero que nos entendamos qual caminho seguiremos. Eu para cá e tu para lá, de preferência sem tua sombra me perseguir. Impossível, conjugamos o mesmo corpo, a mesma pele e a mesma consciência. Não! Tenho cá a minha e tu pensas como achas ético, cá minha pensadura só me incomoda quando tu metes o bedelho e aí tua ética conflita à minha e daí fica eu e tu assim. Enquanto insistires em ir para lá e eu pro lado contrário bateremos cabeça feito bois irracionais. Tá se sou a e tu z, como seremos nós dois uma só letra? ... ... ... ... Viu, não tens a resposta. Mas juntos deveremos chegar a ela. É impossível, incabível; vais fazer que coisa? matar-me ou a ti? Sem eu tu não és e sem ti eu não sou e só vais ser uno quando eu escolher morrer e do contrário a mim. Os dois se levantaram já bêbados daquela mesa de bar. Cada um tomou seu rumo, mas andaram juntos, porque eram as duas personalidades de uma pessoa.


Imagem de autoria desconhecida.

Felicidade vencida


Abriu os braços para sentir a brisa que ventava no alto daquele prédio. Não era bem uma brisa, era um vento intenso, forte e envolvente, um abraço frio, daqueles que arrepia os pelinhos dos braços e ouriça a nuca, mas não frio a ponto de gelar a cara. De braços abertos, o vento tremulava a camisa xadrez como bandeira e agitava o cabelo longo, querendo carregar os fios acastanhados.
Inclinou-se a frente muito sutilmente, pequenos graus de desafio ao vento: quem venceria ele ou o vento? Às vezes o vento dava sinais de desertar, de render-se incondicionalmente à batalha vencida; uma estratégia de guerra para reunir forças e voltar arrasador. Contudo, no meio dessa querela, descobriram-se amigos, ele e o vento.
Despiu-se para sentir a intensidade do vento, para sentir cada golpe, cada corrente tocar-lhe todas as partes de seu corpo e envolvido pelo vento, inclinou-se a ponto de vencer a resistência, inclinou-se entregando-se a um lépido momento entre o limiar da vida e da morte e deixou-se cair do alto daquele prédio, rompendo o vento e deixando-o conduzir-lhe à felicidade vencida; entregou-se ao vento, que a cada sergundo tornava-se mais intenso.

Imagem de autoria desconhecida.

Bis


Talvez seja assim isso que se chama amor: um toque de mãos, um simples toque que explora cada dedo, cada linha - a do amor, a da vida, a da emoção e até as que nem foram traçadas ainda. Durante o toque de mãos, ele sentiu um calor, daqueles calores que surgem dentro da gente quando o coração derrapa e que arde feito brasa. Os dois olharam-se nos olhos, a ponto dele se perguntar donde vinha aquele brilho que nos dela havia e, tentando encontrar a resposta para tal questão, aproximou-se tão perto dela que os seus lábios ligeiramente se tocaram. Ela fechou os olhos e sonhando recebeu dele o beijo e os afagos no rosto e o cafuné na nuca. E, é claro, um só beijo multiplica-se feito praga danada de gostosa em outros infinitos beijos - impossível contá-los. Nem dá vontadinha de parar de beijar, nem de des-abraçar. À noite, ele lembrava-se dessas horinhas neutras e talvez seja assim isso que se chama amor: transformar em sonhos as lembranças de tais horinhas.


Imagem: O beijo, de Auguste Rodin.

O outro lado da rua


Olhou-me duas, quiçá três vezes, até me reconhecer e me reconhecendo seus olhos estalaram, numa reação de querer fugir e querendo fugir não acelerou o passo nem mudou a rota, como se quisesse por algum motivo fitar-me o tempo todo e querendo fitar-me o tempo todo parecia apaixonada e parecendo apaixonada seu coração procurava nalgum canto de sua mínima razão o antídoto e procurando o tal antídoto se deu conta de que não conseguia parar de olhar-me. Também a olhei, para forçá-la me reconhecer e a forçando me reconhecer também realizei que estava apaixonado e estando apaixonado quis beijar-lhe a boca, afagar os cabelos, tê-la em meus braços e tendo-a em meus braços, o tempo pararia para que só houvesse nós dois se amando no mundo e nos amando seriamos um só corpo e uma só alma. Mas não corremos para junto do outro, nem sinalizamos gestos apaixonados... apenas trocamos olhares sinceros, de cumplicidade, eu cá e ela no outro lado da rua.

Imagem do filme "O efeito borboleta".