Da infância poucas lembranças guardamos; como se o Senhor das Memórias tomasse a si nossas lembranças da meninice, se bem que roubo não pode ser, pois este mesmo Senhor das Memórias nos devolve algumas rememorações que vem sem propósitos aparentes, tal lampejos repentinos, imagens fugazes que no segundo seguinte desaparecem.
Viveu toda a sua infância numa grande cidade, da qual nunca se esqueceu e de todos os seus amigos guardou uma em especial. Eram irmãos, mais irmãos que se tivessem o mesmo pai e a mesma mãe; conviveram juntos até que ele completou dezoito anos e foi-se, porque a todos chega a hora de partir, naquela única viagem que se faz sem saber destino e muitas vezes sem saber se ela se concluirá. Uma vez quando criança, um detalhe lhe chamou a atenção: brincavam ele e a amiga na casa dela de um pouco de tudo: gude, baralho, jogos de tabuleiro, de pegar... Enquanto jogavam gude, numa de suas jogadas, a bolinha rolou até a sala ao lado, à direita. Correu apanhá-la. Na sala escura, pouco iluminada pela luz de um abajur, uma senhora, velha, mas não mais que quarenta e cinco anos, acabara de ter um escalda-pés e enxugava-os; ela pousou os pés sobre o tapete, onde a luz iluminava com suficiência e ele reparou: no pé esquerdo faltava o dedo mindinho.
Anos mais tarde retornou, porque algumas dessas viagens são assim, cíclicas e assim sem muito entender os porquês, retornou por dias breves; já era homem feito, estudado e crescido, mas sentia que alguma coisa ainda o ligava àquela cidade e à sua meninice lá deixada. Queria ver a amiga, quiçá a única de suas pontes com esse cheiro do passado; marcou um encontro com ela para dali a dois dias.
No dia, preparou-se com muito asseio. Chegou na casa dela quinze minutos atrasado e foi recebido por um senhor que reconheceu ser o pai dela e foi introduzido na mesma sala onde costumavam jogar gude. Ela delongou-se alguns minutos para descer. Durante esse tempo, ouviu o homem gritar e ordenar afazeres a uma pessoa na cozinha, que ficava à esquerda. Quando ela apareceu, deram um grande e demorado abraço e repararam um o outro; reconheceram-se de imediato. Eram os mesmos amigos de quando crianças, só que agora adultos; mas havia um quê estranho nela; parecia que um procurava algo no outro, algo da infância. Então escutou o barulho de um balde caindo ao chão na cozinha. Impulsivamente dirigiu o olhar e viu, pela porta, uma escova no piso. Viu uma mulher se ajoelhar e pegar a escova para esfregar o chão. Era uma senhora, velhinha, mas não mais que sessenta e cinco anos, descalça e no seu pé faltava o dedo mindinho. Encararam-se. Era isso: o olhar frio. Em choque e desespero, num choro quase compulsivo, saiu correndo da casa.
Viveu toda a sua infância numa grande cidade, da qual nunca se esqueceu e de todos os seus amigos guardou uma em especial. Eram irmãos, mais irmãos que se tivessem o mesmo pai e a mesma mãe; conviveram juntos até que ele completou dezoito anos e foi-se, porque a todos chega a hora de partir, naquela única viagem que se faz sem saber destino e muitas vezes sem saber se ela se concluirá. Uma vez quando criança, um detalhe lhe chamou a atenção: brincavam ele e a amiga na casa dela de um pouco de tudo: gude, baralho, jogos de tabuleiro, de pegar... Enquanto jogavam gude, numa de suas jogadas, a bolinha rolou até a sala ao lado, à direita. Correu apanhá-la. Na sala escura, pouco iluminada pela luz de um abajur, uma senhora, velha, mas não mais que quarenta e cinco anos, acabara de ter um escalda-pés e enxugava-os; ela pousou os pés sobre o tapete, onde a luz iluminava com suficiência e ele reparou: no pé esquerdo faltava o dedo mindinho.
Anos mais tarde retornou, porque algumas dessas viagens são assim, cíclicas e assim sem muito entender os porquês, retornou por dias breves; já era homem feito, estudado e crescido, mas sentia que alguma coisa ainda o ligava àquela cidade e à sua meninice lá deixada. Queria ver a amiga, quiçá a única de suas pontes com esse cheiro do passado; marcou um encontro com ela para dali a dois dias.
No dia, preparou-se com muito asseio. Chegou na casa dela quinze minutos atrasado e foi recebido por um senhor que reconheceu ser o pai dela e foi introduzido na mesma sala onde costumavam jogar gude. Ela delongou-se alguns minutos para descer. Durante esse tempo, ouviu o homem gritar e ordenar afazeres a uma pessoa na cozinha, que ficava à esquerda. Quando ela apareceu, deram um grande e demorado abraço e repararam um o outro; reconheceram-se de imediato. Eram os mesmos amigos de quando crianças, só que agora adultos; mas havia um quê estranho nela; parecia que um procurava algo no outro, algo da infância. Então escutou o barulho de um balde caindo ao chão na cozinha. Impulsivamente dirigiu o olhar e viu, pela porta, uma escova no piso. Viu uma mulher se ajoelhar e pegar a escova para esfregar o chão. Era uma senhora, velhinha, mas não mais que sessenta e cinco anos, descalça e no seu pé faltava o dedo mindinho. Encararam-se. Era isso: o olhar frio. Em choque e desespero, num choro quase compulsivo, saiu correndo da casa.
Imagem: Porta, de António Ferra.
0 comentários:
Postar um comentário