28.12.09

Ano novo


Do alto, olhou o que havia se passado e viu que fora bom. Conferiu cada dia passado e acertou de que eles se sucederam na ordem prevista. Sem mais o que fazer, consultou o relógio: o último minuto. Então, o Senhor do Tempo pousou sobre a linha dos acontecimentos e cravou o ponto final em 2009. No passo seguinte, amanheceu 2010.


Imagem de autoria desconhecida.

24.12.09

Ceia


Estavam todos à mesa farta: a esposa, os filhos, os netos, a famíla, os amigos. Que conversavam e riam e comiam e trocavam afagos. As crianças dividiam a atenção entre a comida e o brinquedo novo. Sorriu, discretamente, feliz e ficou a admirar a cena. Quando fitou a árvore ao fundo da sala, viu uma pequena estrela adentrar a janela e parar sobre o presépio. Atentou com mais cuidado e viu na manjedoura um bebê pegar os pés com as maozinhas e levá-lo quase à boca. Sorriu. E tornou a cear.


Imagem de autoria desconhecida.

16.12.09

A gente agora já nao tinha medo


Ele sabia: no fim, havia apenas a certeza de estar sempre começando. Sabia que era a vida, mais que a morte, a que não tinha limites. E deveria viver corajosamente. Mesmo que não soubesse para onde ir.
Mas foi, no sozinho do vago, que compreendeu, que acordou para uma história sem névoas. Bastava começar, começar pelo começo, seguir até o final e então parar; para o viajante que não sabe para onde quer ir, qualquer mapa serve. E pôs-se a caminhar...
De fato, era um dos homens bons; mesmo que não o enxergasse, ele carregava o fogo. Todas as estradas, todos os mapas, todos os rumos levavam-no a ela. E sua própria consciência o inquiria: “há quanto tempo não te arde o coração?”.
Olhando nos olhos, disseram-se, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Porque o que há é homem humano, e as pessoas não estão assim terminadas. E se, das habilidades que o mundo sabe, a que faz melhor é dar voltas, a vida não era mais do que essa sucessão de faltas. E falta, ela lhe fazia demais.
Deram-se as mãos. Viver é muito perigoso, mas ao lado dela era saborosa aventura. Sussurrando ao ouvido dela, disse-lhe: “não solta da minha mão”. Fosse uma estrada ou o mundo inteiro, ao lado dela bastava-lhe sonhar. E disse: “como é simples! A gente agora já não tinha medo”.


*Conto-colagem com trechos de obras de: José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Inês Pedrosa, Cormac McCarthy, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Chico Buarque, Marcelo Camelo, Fernando Sabino e Lewis Carroll.


Imagem de autoria desconhecida.

7.12.09

O homem com um sonho


Sonhou ele com um guri. Duns cinco anos; aloirado. O guri sempre caminhava alguns passos a sua frente. E lhe chamava de avô. Ele o seguia, como se precisasse protegê-lo ou cuidar de seus passos.
O garoto, a cada pouco que andava, abaixava para pegar as quinquilharias da rua: uma concha aqui, um graveto ali, uma pedrinha verde brilhosa reluzindo o sol, uma folha avermelhada de ressequida. Andava seus passos meninos e conferia se o avô o estava cuidando.
Ele o acompanhava; mãos nos bolsos, ideias incertas. Tão só olhava o garoto caminhando, sempre à frente, por aquele caminho que se fazia eterno. Apenas caminhavam, sem saber o rumo, o destino, o propósito, o porquê. Mas lhe sobreveio a súbita certeza de que, quando parasse de caminhar, o menino seguiria adiante: de algum modo caminharia, um pelo outro, para o infinito.
No entanto, foi o guri quem parou e esperou o avô se aproximar. Uma das mãos segurava as coisas que colheu. A outra entrelaçou os dedos do avô. Encarando-o, disse:
“Vô, compra um sorvete pra mim? Compra? De chocolate”.
Despertou sentindo o solavanco do ônibus. E sorriu envergonhado pelo modo como acordara e porque achou peculiar sonhar-se velho. À sua frente, um menininho loiro, com a boca lambuzada pelo sorvete de chocolate que segurava, lhe sorria. Então levantou-se, acariciou o guri e lhe disse:
“Prazer, meu nome é Julian”.

Imagem: Kaelen, de Nicholev Vintage Textures

30.11.09

A hora atrasada


Já eram horas passadas, de estrelas e lua desenhadas no céu. E aquele rapaz vagueava sozinho, sob atenção curiosa da Noite que olhava seu rumo incerto, à esmo e soturno e distraído.
Perguntou-se, a Noite, como inocente criança, aonde ia aquele rapaz que nunca ardera em amor. E se compadeceu: de tristeza apagou as estrelas e minguou a lua. E ali, no breu sufocante, confabulou.
O rapaz sentiu uma forte rajada de vento, virou-se e viu ao longe alguém caminhando. E, acendendo em carreira, as estrelas voltaram a brilhar. Ela aproximou-se dele, tomou suas mãos e aconchegou-se em seu peito. Ele tocou seu rosto e beijou-a.
A Noite, sentada em seu trono, perdeu-se a observá-los – eternos apaixonados. Perdeu-se tão demasiado nas suas horas que não notou no horizonte o Dia vindo reclamar seu reinado. Quando o viu empunhando seu estandarte dourado, espalhando em raios o brilho do alvorecer, correu até ele e intercedeu para que aquelas horas continuassem paradas.
A manhã seguinte, complacente, amanheceu uma hora atrasada.


Imagem de autoria desconhecida.

25.11.09

O dia do pensamento mágico


Ele tinha de tomar uma decisão. Uma difícil decisão. Tão difícil, que este adjetivo ainda carece de peso para expressar quão decisiva era a decisão. Estava por demais indeciso. Como sempre fora. Existia nele uma ambivalência desastrosa para sua autocompreensão, um joguete dos infinitos pares binários antagônicos que o deixava com dúvidas e imerso numa confusão.
E sem perceber, sobre sua cabeça havia surgido um balão, daqueles balões de histórias em quadrinhos. Um grande balão de pensamento e dentro dele, o sinal da dúvida: a interrogação.
Sua primeira decisão foi, na verdade, uma fuga. Resolveu partir sem rumo, imaginando que a solução aparecesse de mágica. Porém, não pôde fugir às escuras. De longe as pessoas avistavam, por entre os prédios e árvores, o enorme balão e, curiosas, seguiram-no.
Primeiro seguiram seus amigos, depois os aparentados e, lá pelos últimos, um e outro desconhecido. Embora não soubessem o problema ou o cerne da dúvida, ajuntaram-se a ele. Tentou se esconder numa mata, entrou nas galerias subterrâneas, enfiou-se em becos e porões sem conseguir despistá-los. Consentiu, por fim, que o seguissem.
Caminhou até chegar a um canyon. E ali sentou-se. Aqueles pessoas todas sentaram-se também e se colocaram a observar o balão. Que ainda era de pensamento. Que ainda continha a interrogação. Que denotava hesitação. Pois ele hesitava e já tinha o rosto abatido, os olhos afundados na face, as olheiras pesadas, o olhar enuviado, o corpo rijo de tenso.
De repente ouviu: “decide-te, porque estamos aqui para apoiar-te qualquer seja tua decisão”. Ao virar-se para averiguar de quem partia a voz, viu surgir sobre a cabeça de alguém um balão. E apareceu outro, e mais outro um mais aqui e ali. Sobre todos apareceu um balão de pensamento. E dentro deles se desenharam exclamações.
Olhou todos aqueles balões e sorriu, porque nesse exato momento realizou qual decisão deveria tomar.


Imagem de autoria desconhecida.

17.11.09

Da princesa que se salvou do vilão


Conta uma história que há muito tempo, nas terras próximas ao reino das mil léguas havia outro reino e nele vivia uma princesa mui bela. Não havia homem que a ela olhasse que não cuidasse de se enamorar, por mais que rogasse a Nosso Senhor para não cair em paixão.
E essa princesa foi prometida em casamento ao herdeiro do reino do oeste, que distava demasiado longínquo. Mas era el-rey do oeste de tão alta honra e estirpe que honraria se aprazaria ao rei que sua filhasse o esposasse.
A princesa foi colocada num navio, que cruzou viagem pelos mares, rumando ao reino do oeste. Porém era de tão má índole o diabo, que invejando a felicidade da princesa e seu pai, no meio do percurso, tornou o tempo em tormentas e o mar agitado e a princesa e seus séquito temeram a morte. O diabo desviou o trajeto e levou-a para outras terras, muito mais distantes e perigosas.
Quando o mau tempo dissipou-se, o navio da princesa estava atracado numa terra que ela supôs ser uma ilha desconhecida. Chamou por um dos seus, mas não a atenderam. Haviam todos mortos. A princesa desembarcou e encontrou uma trilha; tomou o caminho e depois de perder a conta de quantas léguas caminhou encontrou uma taberna.
Após alguns dias em viagem e caminhando, a princesa tinha fome e por isso adentrou a taberna e pediu ao vilão que ali atendia por uma refeição. Enquanto ceava, reparou quão belo era o vilão, mas penalizou-se em pensamento porque estava prometida a el-rey do oeste e não cabia a uma dama comprometida olhar a outros homens. Quando terminou, fez menção de retirar-se, mas o vilão cobrou-lhe a refeição. Foi que realizou de que não trouxera consigo providências. Sem ter como pagar-lhe, o vilão sugeriu que ela o servisse de algum modo. Recusou; não cabia a damas da sua honra servir a vilania.
O vilão, porém, douto de que a princesa havia admirado sua beleza, usou de sagacidade:
“Mui bela senhora, se não me pagares haverei de ter minha honra atingida. E só poderei compensar a mim se também tiver a tua honra”, disse-lhe o vilão.
“Meu bom vilão, o que me pedes é deveras ultrajante. Jamais poderei pagar um prato de comida com minha honra que já é prometida a meu senhor el-rey do oeste”, replicou a princesa.
Ouvindo isso, o vilão avançou para cima da princesa e encurralando-a sem escapes, tomou por bolinar seu corpo e despiu-se na intenção de desonrar a donzela. Ela, sem ter a quem clamar, invocou o nome de Nosso Senhor e persignou-se. Nesta hora, o vilão urgiu em agonia e de seu corpo eriçaram pelos grossos, e seus olhos ficaram vermelhos e seus dentes pontiagudos e seus pés forcaram-se como os de um bode e seu corpo exalava enxofre e saiu disparado, porque diante do nome de Nosso Senhor nada pode o diabo.


Imagem de autoria desconhecida.

12.11.09

Gostinho bom


Estavam há três horas sentados à mesa do bar, embora tivessem trocado apenas poucas palavras. Se para um as palavras vinham à ponta da língua, para o outro o mundo havia recém se tornado denso e obscuro. Já sem saber como consolar o amigo, perguntou-lhe:

“Não vai nem ao menos tomar o whisky?”

“Não”, respondeu-lhe. “Não quero tirar o gostinho bom do último beijo que ela me deu”.



Imagem de autoria desconhecida.


30.10.09

A mariposa


Ela o avistou de longe. Cabelos flamejantes, longos; que pareciam crepitar conforme a luz incidia. Era um homem alto; maior ficava quando foi se aproximando dele. Ela se achegou insinuando-se: andar sibilante, sinuoso, exibindo suas curvas. E, numa tentativa de conquistá-lo, esvoaçou seu cabelo castanho claro (quase beirando o loiro), mas era ela quem estava seduzida. Atraída, caminhava ritmado em sua direção.
Ainda nem tão próxima, ela já sentia seu calor; um calor envolvente e aconchegante e de súbito, sentiu a pele ouriçar, o passo cambalear e um lépido arrepio chispou-lhe o corpo. E ela voou a ele. Tão inebriada não atinou a loucura de atirar-se nos braços daquele homem cabelo cor de fogo; tão envolvida não pensou a insensatez de mergulhar no calor daquele corpo; tão seduzida não mirou a insana fantasia de entregar-se.
Porém não tinha mais volta, não podia voltar; de tudo só lhe interessava estar com ele. Quando ela chegou bem perto, ele a abraçou e ela sentiu seu corpo mais quente que antes. Não apenas quente, era um quente mais que quente, um quente que pelava, um quente que queimava, um quente que derretia. Em seus braços, ele a conduziu para seu colo, despiu-lhe a blusa e beijou-a, subindo pelo pescoço, ladeando a nuca, até chegar à boca.
Ainda envolvendo-a, deitou-lhe. E ficou mais quente, tão quente que seu cabelo avivou mais ruivo, quase incandescente; e os fios dela aos poucos enegreceram até ficarem queimados por completo. Tão quente que se fundiram. Tão quente que o fogo dominou e devorou a mariposa.


Imagem de autoria desconhecida.

Inspirado em: http://www.youtube.com/watch?v=tZN-IV9yH7g

22.10.09

Valiosa


Da sua coleção de moedas, a mais valiosa de todas não era dólar raro, nem a império, tampouco a de ouro maciço.

Era a que ganhou quando completou um mês sóbrio.


Imagem de autoria desconhecida.

18.10.09

Humanos demais


Tantas idas e vindas, tantos caminhos desencontrados, tantas feridas abertas, tantas noites insones. Depois de tudo, um simples beijo e o tempo sem-fim.


Imagem de autoria desconhecida.

6.10.09

Sinto-te


Sinto teus lábios beijando meu rosto, enquanto tua mão me faz um cafuné. Sinto teus beijos passarem meu corpo, numa viagem mágica e insana. Sinto-te nos abraços, nos afagos, nas carícias. Sinto-te no olhar que me hipnotiza, nos braços que me envolvem, nesse tempo que me fazes parado.
Sinto teu corpo quente, templo de adoração do meu amor-maior. Sinto-te unido a mim. Sinto tua pele macia, tua mão entrelaçada a minha: certeza do teu apoio e companhia. Sinto teu cheiro, paixão, névoa presente das horas em que não estás comigo: tenaz alegria minha.
Sinto teus cabelos encaracolados perderem-se entre meus dedos, enquanto admiro teu olhar pequeno. Sinto-te os lábios, naquele beijo que te roubei. Sinto tua presença no ontem, no hoje, no eterno-sempre. Sinto teu sexo, lascivo e demente, que me leva a sonhos nunca dantes viajados.
Sinto-te louco, sano, homem, criança, amado, amante. Sinto-te no pouco que te conheço, no muito que te descubro, no todo que te exploro. Sinto-te no pouco de mim que em tudo de você. Sinto-te.


Imagem de autoria desconhecida.

28.9.09

Desenho-te


Desenho-te, meu amor, embora ainda não conheça tua face. Desenho te imaginando bela e pura cogitando tuas nuances e curvas. Desenho-te com cabelos longos, à deriva no vento, espelho do sol. Desenho teu toque, teu cheiro, teu olhar e inebriado sinto tua mão, teu perfume e tua espreita. Desenho cada uma de tuas imperfeições, pois é em conjunto que elas te fazem perfeita.
Desenho-te, paixão, por linhas retas esperando as horas tortas, em que a vida, sinuosa, cruza nosso caminho. Desenho-te errado, porque é só ao seu lado que meu mundo será acertado. Desenho-te em branco e preto, porque tua presença traz as cores do mundo. Desenho-te em rascunho, e depois confirmo em nanquim, para te decorar.
Desenho-te criança, para repetir a mim que sempre de ti deverei cuidar. Desenho-te moça, para dizer a mim que a cada novo dia deverei te conquistar. Desenho-te mulher, para confirmar a mim que sempre hei de te amar. Desenho-te senhora, para me certificar de que contigo para eternamente vou ficar.
Desenho-te, minha vida, templo do meu amor-maior, porque é diante de ti que cairei de joelhos a te venerar. Desenho-te comigo na cama, nas horinhas do amor, nos momentos em que somos a expressão máxima de nossos sentimentos. Desenho tuas mãos, guiando minha vida por este mundo que me fazes feliz. Desenho-te.



Imagem de Sujit Sudhi.

22.9.09

Cem contos


Ao acordar, procurou pelos contos que havia organizado na noite anterior. Tinha empilhado-os sobre a mesa as cem histórias, pela ordem da data em que foram escritas. Revirou as gavetas, procurou na estante de livros e depois de uma minuciosa busca pela casa realizou de que de fato os havia perdido.
Decidiu sair; sabia que andar a esmo não traria os contos de volta. Queria apenas espairecer. Talvez alguma ideia de onde os havia guardado surgisse. Rumou à praia, a caminhar pela areia, a molhar os pés. E já estava andando a um bom tempo quando avistou ao longe algumas tochas na areia. Pôde ver também que um rapaz ainda acendia mais.
De curioso, foi observá-lo e quando chegou perto, percebeu nas mãos dele a sua pilha de contos, já bem diminuta – talvez em quatro ou cinco folhas. E, ao cuidar as tochas já acesas na areia, viu que eram os seus contos que estavam servido de tochas.
Ensimesmado, não acudiu nenhum de seus contos, aliás sequer teve tempo de salvar algum. Em pouco tempo estavam todos queimando à beira-mar.
“São meus contos!”, gritou ao rapaz, fazendo menção de tentar apagá-los.
O rapaz apenas o fitou e, sem muito preocupar-se, voltou a olhar os papéis crepitando. Avançou sobre ele e ao encará-lo descobriu quem era:
“Julian Gasmar! És Julian Gasmar! Como é possível? E… como pôde queimar meus contos?”.
O rapaz, de malícia no canto da boca, respondeu-lhe:
“Não são mais seus, são nossos, são de cada leitor que se dedica a seus escritos. E agora eles estarão impregnados no ar que respiramos, no vento que toca nossa pele e viajarão o mundo quando a maré subir. Esse mundo que escreveste, este vasto mundo, será agora um pouquinho parte de nós.”


Imagem: Outside wall lit lights, de Robert Kruh.


PS: Com esta postagem, chego à marca de 100 contos publicados aqui no blog. Confesso que estou feliz e emocionado. Agradeço a visita de cada um, os comentários, conselhos, críticas e elogios! De coração.


17.9.09

Noite de núpcias


Pelo chão do quarto, pétalas de rosas; velas criavam o ar íntimo e intimista. Despiram-se, cada um devotando beijos ao corpo do outro feito templo do amor-maior. Tomou-a nos braços e se abraçaram e beijaram-se relembrando a primeira troca de olhar e o primeiro beijo molhado. Quanto tempo! Deitaram-se; mas não houve sexo, os dois velhinhos perderam-se noite adentro juntos, um para o outro, nus e enamorados.




Imagem de autoria desconhecida.

12.9.09

Caminhante

para Alexandro

Caminante no hay camino,
se hace camino al andar.

(Antonio Machado)


Ao primeiro passo, realizou a longa travessia, vislumbrou o caminho que se perdia no horizonte. Ao primeiro passo, estufou o peito, encheu-o de coragem e iniciou a caminhada.
Não havia pressa para chegar; não havia laços a ficar. A cada passo, a certeza na alma, o autoencontro. Cada quilômetro vencido era uma milha de experiências que, finas como o pó, deentraram seu eu e passaram a fazer parte do seu íntimo.
As dores sobrevieram, os calos, também o cansaço. Mas era a certeza duma recompensa maior o ímpeto de seguir em frente. E dor foi vencida, os calos e o cansaço.
Cada dia naquele caminho o tornava dono dum trajeto próprio: embora fossem muitos os peregrinos, aquele caminho era só seu. Não que fosse egoísta, mas porque as emoções, angústias e alegrias são individuais e assim cada caminhante faz, ao andar, o seu caminho.
Trinta dias depois, avistou ao longe a chegada. E olhar para trás foi como se olhar menino; foi lançar olhos a um passado distante e perto. Embora a feição ainda fosse a mesma e a aparência pouco tivesse mudado, era de fato outro homem. Mais maduro, mais experiente.
Diante da catedral, sentiu-se pequeno, quase que encolhido; mas foi só adentrá-la que se deu conta de que o lugar era para gigantes.


Imagem: Alexandro Kurovski, no caminho de Santiago de Compostela.

11.9.09

Carta de Julian Gasmar a Nuno Thales da Hora


Acaso já colheste uma rosa? sem usar uma tesoura de poda? Sabes, meu caro... arrancar a flor significa ferir-se com seus espinhos. Penso que nunca viste minhas mãos: não conheces todas as marcas de picos que trago nelas.
Quando se arranca uma rosa, Nuno, o espinho não só fere a mão, como ele se solta da flor e prende-se aos dedos. E tu não sabes quantos espinhos já carrego dentro mim. Tu sequer sonhas a intensidade da dor que provocam.
E eu não sei como tirá-los de mim.
Nuno, não sou uma gralha. Sou esta mão calejada, marcada de espinhos e repletas deles. Sou esta dor de outrem, que não passa e não diminui. Esta é minha sina. Estranha e minha.




Imagem de: teclasap.com.br

6.9.09

O burrinho maltês


Nas bandas do planalto do Paraná, pastava um burro às margens do Iguaçu. Era um burrinho maltês; raros os da sua espécie. Fez do leito do rio sua moradia, ali encontrava pasto fresco. Embora estivesse sempre àquele leito, era nas épocas de cheia que servia os homens, transportando-os de um lado ao outro do rio, evitando-os de afogar. Não cobrava pagamento, mas recebia como gentileza algumas cenouras daqueles que carregava em seu lombo.
Certa vez, viu um vaqueiro, que talvez fosse das bandas de outros pastos, andando à margem do rio. Com ele, vinham várias borboletas e o burrinho nunca tinha visto tantas juntas. Tão feliz, pôs-se a brincar com elas, perseguindo cada uma em seu voo incerto. Tão feliz, corria atrás delas que até tinha vontade de deixar aquele rio e ir para o lugar de onde elas vinham. Tão feliz, porque as borboletas permaneceram em seu redor.
À noite, o vaqueiro voltou. Chovia em tempestade – águas torrenciais. O vaqueiro aproximou-se do rio como se medisse os riscos duma travessia e ali empacou. O burrinho maltês achegou-se nele e inclinou-se para que o vaqueiro fizesse montaria. Nos dois, o receio de cruzar aquelas águas: era noite e chovia – impossível antecipar perigos.
Assim que o vaqueiro fez a montaria, o burrinho adentrou o rio enegrecido pela noite e agitado pela chuva. De logo viu que não dava pé e a correnteza carregava-os leito abaixo. O vaqueiro pesava e ambos, aos poucos, afundavam. Quando a água bateu ao nariz do burrinho, tiveram certeza de que se afogariam. E de medo, o vaqueiro agarrou ao corpo do burrinho, que com muito custo agitou as patas e venceu a força do rio. Nadava. Aos poucos ambos boiaram n’água e atingiram a outra margem.
O vaqueiro não esperou o burrinho subir à terra firme, assim que sentiu o chão próximo pulou e partiu em disparada. Deixou o burrinho à sorte, sendo carregado pela correnteza. Custosamente, o burrinho voltou à margem e saiu da água. Porém não encontrou a recompensa. Viu apenas um cavalo, pastando naquilo que considerava seus pastos.
Na noite seguinte, viu ao longe o vaqueiro se aproximar e com ele mais borboletas. Animou-se: talvez hoje vaqueiro trouxesse sua recompensa. O burrinho esperou a chegada dele, solicito inclusive para uma nova travessia. Mas o vaqueiro não atentou ao burrinho; desviou seu caminhar rumo ao cavalo e lhe ofereceu uma cenoura. Depois ofereceu outra e mais outra e após conquistar a confiança do cavalo, montou-o e atravessou o rio.
O burrinho, de raiva, matou cada uma daquelas borboletas que voavam em seu redor e que acompanhavam o vaqueiro; pisoteou uma a uma, até se certificar de que nenhuma delas mais voaria. E deixou aquele rio porque não mais levaria alguém em travessia.


Imagem de autoria desconhecida.


2.9.09

Carta de Nuno Thales da Hora a Julian Gasmar


Julian, de fato tens asas e por vezes mirei o céu crendo ver-te rodopiar pelos ares. Mas tu não voas... és como a gralha que foge em corridelas após plantar uma semente porque não quer perdê-la de vez.
Julian, as araucárias brotam, crescem e morrem. Rompem o chão sob força doída tentando rasgar o céu. Jamais o conquistam. As araucárias dão sementes, mas cabe às gralhas recolhê-las e plantá-las. Araucária é a vida certa, de eira e beira.
As gralhas, estas voam; uma rota nova a cada bater de assas. São aos bandos, porém solitárias e que mergulham no azul como se entrassem no mar a ser descoberto. Ali e acolá elas semeiam as araucárias, plantam essa semente que cresce e floresce. Gralha é essa curva no céu.
Tu és isso, uma gralha; aceite. Admita que tens medo de alçar voo, de aproximar-se do sol. Nunca saberás ao certo quem é, o que está sentindo e viverá sob a incerteza. É a sua sina. Estranha, mas sua.


Imagem de autoria desconhecida.

26.8.09

Cartum



Ele não era um bonsai, embora parecesse diminuto e encolhido, era na verdade uma araucária, de poucos galhos, mas fortes o suficiente para quem nela quisesse se apoiar. E com jeito pode-se aproveitar a sombra que ele proporciona.
Outras vezes era como uma ave, um pardal de jardim. Arisco, desconfiado de quem se aproxima demais e sempre preparado para alçar voo. Às vezes parece que ele se exibe, indiferente, para que o olhem, como se dissesse: eu tenho asas e voo.
Voa, desafiando a gravidade; voa, mergulhado no céu, dono daquela imensidão vasto-mundo. E assim parece um desenho, que vive numa lógica própria, que foge feito ave desconfiada e que procura abrigo nos galhos altos duma araucária.

23.8.09

Esqueci


Existe um nome, que há muito tempo deixei de pronunciar e o esqueci. Existe uma fotografia, que há muito tempo deixei de ver e se apagou. Existe um perfume, que há muito tempo deixei de sentir e se extinguiu. Há um raio de sol, que há muito tempo deixei de ver e já nem floresce mais a rosa. Há uma lembrança que há muito tempo deixei de inspirá-la e já me esqueci.




Imagem de autoria desconhecida.

16.8.09

Linha da vida


Depois de percorrerem as curvas do corpo, as mãos se encontraram na linha vida. E fundiram-se num só caminho.


Imagem de autoria desconhecida.

9.8.09

A hora


Quando ela decaiu os olhos e o corpo sem vida, ele o arrumou cruzando suas mãos sob o abdômen e beijou-a na testa. Depois deitou-se ao seu lado esperando, em breve, a hora de reencontrá-la.


Imagem de: The Photoblogs.org - DYSWIS.

4.8.09

A contadora de histórias


Eu fico imaginando uma senhorinha, uma senhoria de cabelo bem branco contando histórias. Ninguém mais, só essa senhorinha. As crianças correm para perto dele e ela os faz sentarem em redor. Tudo o que ela tem de fazer é contar histórias, das vezes sentiu vibrações do outro mundo, das coisas que guarda na sua bolsinha roxa, de quando caiu na praia de Mariscal... E as crianças ficam lá, apenas ouvindo. É só isso que ela vai fazer; ela vai ser a contadora de histórias. Parece loucura, mas isso é só o que a senhoria vai fazer.


Imagem de autoria desconhecida.

29.7.09

Acidente


Diante do estrago, perguntou o que houve com o carro.

- Absinto muito, pai.



Imagem de American Grey.

20.7.09

Espero-te


Espero-te nas esquinas de cada rua, espero-te nessas horas nuas, extensas e paradas que o dia impôs a mim. Espero tua vinda sorrateira, teu abraço apertado, teu beijo furtado. Espero-te às manhãs de neblina, desenhando tua silhueta à névoa branca. Espero-te às tardes, quando vejo a falta da tua sombra ao lado da minha. Espero-te à noite, quando sinto o teu vazio no meu lençol e o calor que deixaste a se esvair.
Espero teu corpo junto meu, conjugado uma só alma, suando um só calor, embolando-nos num só amor. Espero-te nua, pura e entregue a mim. Espero-te para beijar-te em carícias, acariciar-te em arrepios, arrepiar-te em desejos. Espero-te para nossa viagem eterna, às terras de sonhos e fantasias, aos devaneios que o amor nos leva a passear. Espero teu amor-maior, templo de minha devoção; espero teu jogo, casa de minha perdição; espero teu corpo, altar de minha remissão.
Espero-te pelo ontem, espero-te pelo hoje, espero-te ao eterno-sempre. Espero-te inequívoco do amor que me inebria de ti; espero-te certo da vida minha que é ao teu lado; espero-te douto da tua vinda, para destravar minhas horas paradas, douto de que tu chegarás e tomarás minha mão, guiando minha caminhada, ao teu lado. Espero-te.




Imagem de autoria desconhecida.

14.7.09

Porque sentiram o frio


Desceu do ônibus e a seguiu. Ela firmou o passo e não o reparou; apenas outra pessoa que rumava a casa. Notou-o quando ele a ultrapassou; pouco pôde ver: estava de costas, usava luvas, gorro e cachecol. Ele a investigara melhor dentro do ônibus; embora agasalhada devido ao frio, as roupas delineavam seu corpo e isso o excitou. Só que não estava apenas excitado: dalgum modo também ficara desconcertado.
Não sabia onde ela morava; andar a sua frente o impedia de ver se ela virasse numa transversal ou entrasse numa das casas da rua. Reduziu o passo, deixando-a passar. Foi quando ela estranhou e o fitou. Ficou apreensiva, porém não receosa. Ele apertou o passo e a alcançou. Tomando-a pelo braço, disse: espere.
Ela virou-se e sentiu-se seduzida pelo olhar dele. Mal teve tempo recobrar as noções: ele a beijou; ela entregou-se àquele beijo. No seu íntimo pensava que era loucura beijar um estranho, mas aquele homem lhe oferecia segurança e seu beijo arrepiava-lhe a nuca.
Ele percorreu as curvas do corpo dela com as mãos. Atingiu as nádegas e apertou-a em seu corpo. Ela estremeceu e soltou um suspiro abafado; pôde sentir o volume Ele a conduziu contra um muro coberto por hera, mesclando-os à vegetação e escorregou os lábios por seu pescoço. Ela abraçou aquele homem e deixou as mãos vagarem sem rumo naquele corpo. Levantando a blusa dela, ele atingiu os seios. Mordiscou-os. Ela gemeu. Já não havia mais o frio. As mãos dela, dentro da calça dele.
Ele desceu à sua barriga, em beijos e carícias... e abriu o zíper de sua calça. Estava molhada... e quente. Ele retomou o trajeto, beijando e lambendo seu corpo e teve seus lábios escondidos num beijo. Ela virou-se e os corpos se conjugaram numa só alma. Ao clímax, sentiu as horas paradas, sentiu o mundo estacionado, sentiu o corpo amortecer, sentiu a pele queimar, sentiu o corpo dele suar, e um sentiu o outro gozar.
Ela a virou e, ainda explorando seu corpo, acolheu-a num abraço firme. Afagou sua nuca. Beijou-a. Ela ainda tremia, estremecida em devaneio. Ele fechou-lhe calça, abotoou-lhe o casaco e a acariciou. Depois, se recompôs.E continuaram a andar, abraçados, porque sentiram o frio voltar e assim um esquentava o outro.



Imagem de autoria desconhecida.

5.7.09

Não te amar mais


Não é o tempo que não passamos juntos, nem os passeios que não fizemos, nem as horas que não foram paradas para nós. Não, minha querida, não... Não são abraços que não trocamos, os filmes que não vimos, as risadas que não provocamos um no outro. Não são os olhares não trocados, as viagens não realizadas, as certezas não firmadas, o futuro não planejado. Não... não... nada disso dói.
Dói, dói intensamente o tempo que não passaremos juntos, os passeios que não faremos, as horas que não pararão por nós, os abraços que não trocaremos mais, os filmes que não veremos, as risadas que não provocaremos um no outro, os olhares que não trocaremos, as viagens que não realizaremos, as certezas que não mais serão firmadas... o futuro que não planejaremos. É isso que dói e talvez compreendas por que é tão doloroso ter de não te amar mais.




Imagem de: feudalge.de

29.6.09

A rosa e os espinhos


Julian Gasmar, de dias, observava a rosa envolvida pela sebe. Sufocada, a rosa tentava respirar um pouco de sol. Julian Gasmar atinara-se de que precisava salvá-la dos espinhos, mas se perdia observando-a. Quis resgatá-la; teve as mãos arranhadas e conteve-se.
A rosa, teimosa, avançava pelo pouco espaço entre os galhos da roseira; teve rasgadas suas pétalas. Julian Gasmar tentou de novo, cuidando dos espinhos. Alcançava a rosa e mais densa ficava a sebe. Sentiu um pico e o sangue correu-lhe o dedo.
Dirigiu-se à botânica. E contou com pormenores sobre a rosa e a sebe e os espinhos e o pico e o sangue. E contou que queria de alguma maneira salvar a rosa, que precisava de alguma maneira salvar a rosa, que desejava de alguma maneira salvar a rosa, que haveria de alguma maneira de salvar a rosa.
O botânico atentou ao discurso de Julian Gasmar. Tudo ouviu e cerimonioso ponderou: “é o ciclo natural, Julian... as rosas crescem, florescem e morrem, umas nem florescem, outras perecem quando perdem a última pétala”. Tomou fôlego, fitou Julian Gasmar e calou-se. Não tinha a pretensão de fazê-lo revoltar-se com seu falso descaso. Queria que Julian Gasmar se apercebesse de que somente de si dependia a decisão de salvar a rosa.
Então lhe disse: “mas se quer mesmo salvá-la, Julian, faça-o! Meta a mão na roseira, abra espaço na sebe e salve a rosa, mas a salve intacta, protegendo suas pétalas e seu caule. Se quer mesmo salvá-la, Julian, afugente os medos de se ferir... é preciso se ferir para tê-la em seu vaso, ou ao menos ter a coragem de regatá-la mesmo podendo se machucar”.
E quando Julian Gasmar deixava a botânica, arrematou: “Julian, ou os espinhos da roseira machucarão tuas mãos ou sufocarão a rosa, cabe-lhe decidir o que doerá mais”.





Imagem retirada de: Grain 2 sels.

21.6.09

Outros abraços


De pelúcia e lacinho vermelho numa das orelhas. Os bracinhos era um tanto maiores, para que pudessem abraçar um ao outro. Duma forma cálida, representavam os cachorrinhos o amor deles e assim como as pelúcias haveriam de estar abraçados sempre.
Mas ele teve uma ideia: enquanto ficaria com a cachorrinha, ela levaria o cãozinho e mesmo que não estivessem juntos – trariam a lembrança do outro. E o espaço vazio do abraço de cada bichinho surgido pela falta do par seria preenchido por esta lembrança. Assim estariam, os brinquedos ou eles, sempre abraçados.
Quando cada um seguiu seu rumo, ficou o vazio no abraço roto de cada cachorrinho e também um desenho triste na face peluciada. Não mais voltariam a se atarem envolvidos, não mais um seria o par do outro. Até o lacinho vermelho perdeu o brilho.
Fitava a cachorrinha tenso e culpado, talvez porque visse nos olhos dela seu reflexo triste, mas estavam ali os dois, companhia e consolo das horas paradas. E sobreveio-lhe que precisava de se apartar dela.
Preparou uma pequena barca e lá colocou a cachorrinha; um impulso ao mar e barca partiu. Não podia garantir de que a barca não naufragaria como não podia garantir que estaria ali se regressasse. No íntimo, desejava que o vazio se preenchesse e que aqueles braços se encontrassem em outros abraços.




Imagem: "Abraço", de Cibele Krukoski.

5.6.09

Queira me bem


As mãos folheiam o jornal e os olhos argutamente focalizam imagens esparsas. Às vezes lê uma manchete. A cabeça, tombada de lado, o olhar enuviado... lá ao longe. Que pensa? que matuta? que relembra?
Olha-me e parece uma criança desprotegida demais pedindo um abraço. Olha-me e parece um pequeno garotinho com medo da falésia. Olha-me e sabe que eu estou ali, para segurá-lo quando titubear nos passos. E eu estou ali... toco-lhe e ele se conforta, aconchega-se no meu abraço e depois deixa-se perder nas páginas do jornal.
Os olhos azuis tornam e me fitar: reclamam agrado: queira me bem, meu neto!




Imagem de Marcin Tomczak.

23.5.09

O mar


Sentaram-se na areia a tentar enxergar na escuridão da noite já adiantada as ondas quebrantando na areia. Vez em quando, uma e outra rompiam em marulhar no alto-mar.
Não havia lua, nem aquela paisagem bela com fogueira, barraca e outras coisas que os amantes costumam montar para uma noite de amores na praia. Eram apenas os dois, a olhar o mar calmo. Não se abraçaram, porém, nem sentaram coladinhos lado a lado.
Naquela noite, lá em casa, senti-me atraída por você, disse trazendo lá do alto mar uma daquelas ondas que arrebenta destrutiva. Pegou na mão dela, permitindo sentir os dedos gelados de suor e conduziu-a ao peito. O coração, este sim estava como dizem todos a mil, batendo acelerado, nervoso, talvez estivesse esse coração num barco a deriva lá no meio do horizonte sendo cambaleado pelas ondas que teimavam em derrubá-lo.
Olharam-se nos olhos e sua boca ensaiou um sorriso maroto, meio moleque, safado, mas inescapável, completando a frase que havia dito.
"Não imagina como esperei essa frase", respondeu. E no mesmo agito nervoso do mar, encontraram-se os lábios, as mãos se entrelaçaram, os corpos se atraíram, os olhos deixaram-se sonhar.




Imagem de Emília Duarte.

13.5.09

Museuzinho


Como num museu, guardou tudo no altar-mor do seu coração. Guardou os símbolos, os ícones, as cartas; lembranças dum passado vivo cambaleante. Um nariz de palhaço numa redoma, o chaveiro de cachorrinho numa redoma, a cartinha da viagem numa redoma, a pedra do lago numa redoma; seu próprio coração numa redoma. A primeira foto num quadro à parede, a imagem do natal num quadro à parede, a última foto num quadro; uma galeria inteira de quadros em memória. Guardou até a rosa, que deixava ao lado do nome. E tu, que guardas dele?




Imagem de autoria desconhecida.

6.5.09

Os três homens sábios


Quando via seu passado, era criança: cambaleante nos passos mas certo na caminhada. Era garoto miúdo, devia ter lá uns três anos de idade. Vestia calça preta, camisa branca e suspensórios e a cada passo parava para pegar algo do chão. Seu passado era a descoberta do mundo. Que não lhe parecia hostil nem perigoso: era um espaço com o qual se familiarizava e aos poucos torna aconchegante.
O futuro, mirava aos olhos dum velho. De passos lentos e mãos trementes, arquejado porque carregava às costas o peso da vida conhecida e experimentada. Trazia nas rugas as marcas da certeza de ter desbravado o mundo. Vestia também calças pretas, camisa branca e suspensórios, só que em tamanhos maiores. Seu era a fortaleza com a qual sustentava o que viveu e aprendeu.
No presente, era um homem incomum, que com as certezas do velho voava nas descobertas da criança.


Imagem: 3 wise man, de Elizabeth Price.

27.4.09

Apelo


Mãozinhas trêmulas, olhar enuveado. Quando ele foi se despedir ela disse: "a nonna está esquecida das coisas, mas não se esqueça da nonna".




Imagem: Semenáček, de Oldřich Šístek.

14.4.09

Lembrança viva


Recostado num banco de praça, abstraia o além na tênue linha fina do horizonte. As idéias, iam no alémlém, revoando papel ao vento. No olhar, uma vidrez opaca, o facho baixo, a profundidade escura, ermo triste. Nada pensava de traduzível, as idéias tão-só desprendiam e desmanchavam-se; nem o olhar as caçava. O céu sem pássaros, sem nuvens brancas, sem a faixa de amarelo ouro – o entardecer era uma ligeira pincelada de cinza esfumaçado. Não piscava, nada fitava. As idéias, talvez um quadro parado na memória.
Senta uma moça à sua direita e ele erige um muro alto: barreira intransponível. A moça fita seu olhar, encara-o. Vê-se perdida naquele breu sufocante. Ela olha o horizonte e acompanha uma lembrança, que flutua. Lembrança dele: do amor de que se esquecera. Com a ponta dos dedos, pega-a e equilibrando-a traz a si. No ar, enrola-a e, quando bem redondinha, prende-a fechando a mão. Ali esquenta e a lembrança brilha. E vencendo a muralha, ela toca seu peito, devolvendo-lha viva.
E ele sente seu coração pulsar; por ela.




Imagem: Balboa Liles de Paul Sapiano.

7.4.09

Tempo passado


O sol marcava o meio-dia quando chegou à casa da avó. Depois de anos a senhora abandonaria aquela casa; ia ajudar-lhe com a mudança. Percorreu o jardim abandonado contornando a casa até alcançar a porta dos fundos. À escuridão da sala, um golpe de luz fazia breu. A avó não estava. Abriu a geladeira e pegou um jarro d’água, serviu-se um copo e foi à sala. Do sótão, o avô perguntou-lhe: é você?
Nada respondeu. Abriu uma janela. Atravessou a sala e abriu outra, mas apenas em meia veneziana. Sala grande, alta, aconchegante, com móveis antigos, alguns cobertos com lençóis, outros com pó. Duma gaveta aberta, tomou um álbum. Disse-lhe o avô: achei umas fotos antigas que coloquei nele.
Sentou-se no sofá e o abriu. As primeiras fotos mostravam uma época que só existia na lembrança de algumas pessoas: uma família unida, reunida e amiga. Não havia fotos decerto das desavenças, das invejas, dos conflitos que corroeram aquele tempo já apagado da lembrança da maioria. Outras perpetuaram um grande almoço, agora com os netos. Os retratos mais recentes congelaram o casal vivendo em famílias diferentes. Uma única foto persistia em avisá-los família: um lanche dos avós com os netos, guris.
Não havia nada de novo naquele álbum. Havia, porém, um tempo passado que evoluía revelando a decadência familiar. Havia um tempo passado tolo, um tempo passado que não pode ser revivido para amanhecê-lo melhor. Um tempo passado que causa um mal-estar súbito, que retira as ações e mergulha no devaneio e na busca dos porquês. Um tempo passado autofágico.
Quando o avô desceu do sótão, dormia no sofá, desajeitado. Numa das mãos, a foto do avô, como se o agarrasse para si. O avô aproximou-se dele; uma forte brisa entrou na sala, trazendo uma veneziana de madeira que bateu em estrondo na janela. O fraco vento arrepiou os pêlos de seus braços. O avô beijou-lhe a testa e um arrepio correu-lhe a coluna, estremeceu-lhe o corpo. Acordou e deparou-se com a avó. Que lhe disse: calma deve ter sido apenas um sonho; talvez sonhaste com teu avó.
Olhou então a foto do avô em suas mãos. E recolocou no álbum aquele tempo passado que havia despertado.




Imagem de autoria desconhecida.

3.4.09

Da torre de Antonina


Acudam El-Rey, acudam-no, bradava o arauto. El-Rey havia deixado a guarda, desmontara a vigília do alto da torre de Antonina e os navios alemães bombardearam o forte. Quanto tempo, quantos anos, quanta horas perdidas, quanto alerta. Uma milha a mais e os alemães seriam derrotados, lamentava a corte. Agora o caminho estava aberto para a investida germânica; minutos e Curitiba capitularia.
E chamaram o médico da corte e trouxeram o general, comandante da brigada. Haveriam de esperar que o inimigo alemão pusesse a cabeça de fora da toca para atacar-lhe em revés. Mas e El-Rey, sobreviveria ao ataque? Mas e El-Rey, comandaria forte o contra-ataque?
E disse o general, comandante da brigada: ataquemos pelo sul, protejamo-nos na base da torre, reforcemos o forte, que um só golpe liquidamos o invasor. E disse o médico: salvaguardemos El-Rey, salvemos-lhe a vida, com El-Rey em vigia, Curitiba não capitula.
E El-Rey remonta a guarda e o exército se aglutina. Quanta movimentação, quanto suor, quanta tática traçada, quanta força demonstrada. E soa o sino da igreja a melodia da vitória, soa o sino da capela a música da reviravolta: a guerra quase perdida agora está vencida. E do alto da torre de Antonina, El-Rey vigia: protege seus súditos, protege seu castelo; brilha-lhe a astúcia, brilha-lhe a coroa.




Imagem: Torre de Belém, de Ricardo Gil.

27.3.09

Quero-te


Quero te beijar em carícias, te bolinar em beijos, te acariciar em abraços. Quero te deitar em meus braços e te levar a navegar essa viagem no paraíso cá na terra. Quero-te nua, quero-te pura, quero-te lua. Oculta e nova, cheia de ti, cheia de mim a minguar as horas todas nesse crescente tempo só nosso.
Ah meu amor, deusa do templo do meu amor maior, quero teu corpo em minha alma, quero tua calma, quero querer-te querendo. Oh minha musa, que inspiras as horas de minha pena torta, que a ti descrevo em prosa os versos do meu amor. Quero arranhar tua pele morena, serena entrega que me faço a ti.
Quero a viagem insana, que a maré das circunstâncias me banhou em águas inequívocas. Ah minha vida, estrada crua da minha perdição, ai de mim. Ai, de mim, desse desejo louco, que me faz querer amar-te mais, à marte mais, mar te traz. Quero num beijo roubado, o devaneio acertado e os dias prolongados ao teu lado em eternos beijos, abraços e afagos. Quero-te.


Imagem de autoria desconhecida.

18.3.09

Última chamada


Soou o apito. Última chamada. Todos a bordo, gritou o bilheteiro. E todos apressaram o embarque. Menos o homem, que permaneceu sentado. Enquanto furava as passagens dos que embarcavam, o bilheteiro notou o homem inerte e se deu conta de que há anos ele estava ali, sentado naquele banco. Embora tivesse um bilhete, nunca demonstrou que fosse embarcar. Pouco depois, aproximou-se do homem e perguntou-lhe: o senhor não vai embarcar?
O homem olhou para o horizonte, fitando a entrada da estação, como se esperasse alguém. O bilheteiro continuou: é o último trem, quero dizer, é o último mesmo... não haverá mais trens partindo. O homem encarou-o ensimesmado, porém não perplexo. O bilheteiro completo: última chance: ou o senhor vai, ou o senhor fica.
O homem levantou-se, caminhou alguns passos e novamente encarou ao longe a entrada da estação. Perdeu-se alguns minutos, ninguém viria, não haveria de quem se despedir. Retirou do bolso um bilhete, velho, um tanto amassado, porém sem data marcada. E embarcou.
Partiu sabendo que não mais voltaria. Partiu e não levou bagagem nem o pó seco daquele lugar. Partiu porque era preciso; partiu decidido, sem a promessa do retorno breve.




Imagem retirada de: http://deiatatu.wordpress.com

7.3.09

Prêmios Rubens Mazza e Chuchu de Ouro


Interrompo a programação do blog para anunciar os vencedores dos prêmios Rubens Mazza e Chuchu de Ouro, do 9º Putz:


PRÊMIO RUBENS MAZZA

Melhor Filme Trash: Velinhas Assassinas
Melhor Filme: As vinhetas que anunciavam as categorias
Melhor Direção: Dama de Copas
Melhor Ator: Phillipe Trindade
Melhor Atriz: Luiza Bonin (no filme das vinhetas)
Melhor Ator Coadjuvante: Sandoval Poletto
Melhor Atriz Coadjuvante: Delma Maskow (por Velhinas Assassinas)
Melhor Ator Inútil: Pianista de Barulho
Melhor Cena: Risada do Mário e “massa morrendo” (Velhinhas Assassinas)
Melhor Trilha Sonora: Dama de Copas
Melhor Roteiro: Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além
Melhor Fotografia: A Linha
Melhor Edição: Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além
Prêmio Originalidade: Piada “Que Mário?” em Jungle Journal


PRÊMIO CHUCHU DE OURO

Pior Filme: Barulho
Pior Direção: Barulho
Pior Ator: Tiago Cegatta (por Swarovski)
Pior Atriz: Vanessa Liebel (por Swarovski)
Pior Clichê: Personagens calçando chinelo e se olhando no espelho.
Pior Edição de Som: Ensaio sobre a lucidez
Pior Roteiro: Making off


Leiam os contos abaixo e comentem.

15.2.09

10:10


Olha o relógio. 10:10. Flashes de luz rodopiam, embriagam. Cogumelos. Tontura... turva o real, se multiplica, enchem a cabeça, dilaceram-no os pensamentos e o sentimento. Eufórico, sua frio, treme as mãos, respira ofegante. Falta a luz, sufoca-lhe o ar, voam as idéias. Se decompõem, perecem no ar assim que lhe roubam a vida. Iminente fracasso. “Por que o abandonastes?” As luzes o confundem, inebriam o real e o imaginário, passado e presente numa só imagem. Olha o relógio. 10:10.


Imagem de autoria desconhecida.

10.2.09

Aqueles velhinhos

para os avozinhos...

Aquele jeito de gente do interior, de patriarcas de família grande, de velhinhos que a gente quer como avós da gente. Aquelas noites todas em torno da mesa jogando baralho. E o avô grita truco, e a avó ri contida e no ambiente aquele clima feliz. Dia após dias, aqueles quitutes e doces que a senhorinha prepara com esmero. E a avó diz podem comer tudo e o avô passa o dedo nas travessas de doces já vazias. Aquela casa, grande, esperando os filhos e netos e a avó se alegra ao vê-los juntos e o avô toca sua gaita em música de festa. Aqueles dois velhinhos ele adotou como os seus avós.


Imagem de autoria desconhecida.

30.1.09

Feliz aniversário


Em redor do bolo, já não gritavam como crianças ensandecidas, nem aguardavam afoito a cantiga findar. Também não se agitavam todos querendo assoprar as velas. Mas guardavam nos olhos a docilidade pueril, a alegria de mais uma festa. Ela, aniversariante, como habitual, recolhia um ligeiro embaraço de ser o centro das atenções naquela noite. Porém era a sua noite, como também foi seu o dia todo. Dia em que os abraços trocados traziam a acolhida cálida, em os beijos molhados em seu rosto tinham o sabor da infância cúmplice, em que a pose para a foto lembrava irmãos de chapéu de festa e língua de sogra. E assim o dia todo teve cheiro e a aura de feliz aniversário.

Imagem de pecadodagula.com

26.1.09

O terceiro ato


Ao entrar no palco para o terceiro ato, sentiu que ali seria o seu momento máximo da carreira. Envolto pelo cenário cru, uma e outra mobília esparsa, deixou-se invadir pelo personagem de maneira impossível de distingui-lo do ator. Que ele também percebeu. E havia a luz azul em penumbra, provocada pela iluminação: o clima certo para o monólogo. Deixou-se levar pelo ambiente, caminhou pelo palco insinuando sua interpretação. Fez movimentos pausados, gesticulou em dúvida, mas não lhe vinha a fala.
A platéia, quieta. Também se deixando absorver pelo ator em personagem. Porém em alguns abatia um incômodo, um sentimento de dor, de impaciência.
Do palco, encarou a platéia, fitando cada rosto compenetrado em suas ações. E começou a chorar, não porque tinha a impressão de que esquecera o texto, mas porque lhe era doloroso viver aquele personagem, era dum sofrimento pesaroso ser aquele personagem. Chorava compulsivo, chorava nervoso.
Era doloroso para o público permanecer, os primeiros já levantavam, claramente exaltados e perturbados, e saiam tentando, às vezes em vão, conter as lágrimas. Os que ficaram desviavam o olhar, tentavam procurar nalgum canto do teatro um escape à tangente, mas aquela penumbra azulada os envolvia e os petrificava. Não mais puderam resistir, pouco a pouco, retiraram-se. Ele permaneceu no palco e sequer notou que a platéia esvaziara. O terceiro ato era apenas ele, ator-personagem de sua tragicomédia.


Imagem de autoria desconhecida.

16.1.09

O começo


Arrumou as malas e partiu. Feliz, porque agora sabia o destino. Feliz, porque vislumbrou um caminho. Feliz, porque enclausurou o ontem no mausoléu do passado. Feliz, porque a sua frente se abria um mundo mágico. Feliz, porque esse mundo mágico lhe trazia aconchego e conforto. Feliz porque suas dores já não doíam mais e toda a mágoa tornou-se uma cicatriz imperceptível. Feliz, porque a cada passo se reencontrava e ousava saber de novo quem era. Feliz, porque era criança e tinha o mundo mágico para desvendar e gostosuras para descobrir. Feliz porque agora tudo era novo e um começo. Feliz, porque sabia, de certeza, que estava mais uma vez sempre começando.



Imagem de autoria desconhecida.

12.1.09

Histórias


Se para ela, ele era uma página virada; para ele, ela tornou-se um livro fechado.


Imagem: Photoschau.