12.12.08

Meu amigo


Se você o vir, por favor, me avise. Não é um pedido, mas um clamor. De quem perdeu. Ele não é perfeito, nem completamente bom tampouco extremamente mau. Também não é um gênio, nem um artista ou uma celebridade. Eu só preciso dele, preciso duma forma sobremaneira porque ele me coloca nos eixos, faz me encontrar quando estou perdido. E desde que ele se foi tudo ficou tão escuro, tão difícil, tão pesado. Mas eu preciso dele, não há outro, não posso substituí-lo. Talvez você, sim... você, talvez o veja nalgum lugar, melhor se o encontrar. E se o vir, diga que preciso dele, diga que ele volte. Ele... ele é meu amigo...

Imagem de twenty-five.net

25.11.08

Na parede da memória


Enquanto ele fazia os biscoitos, a vozinha atentava cuidadosamente à receita, com olhar de meninota que assiste a mãe fazendo gostosuras. Com letrinha trêmula, mas redondamente desenhada, anotou os ingredientes no velho livro de receitas, cujas folhas exalavam o cheiro doce de cada quitute ali anotado.
Para ele, havia a satisfação de pertencer àquele ambiente, de sentir acolhido e querido por aquela senhorinha, de sentir acalentado por aquela casa e aquelas pessoas todas, de sentir família.

Dos biscoitos, ficou o sabor saudoso do chocolate; da vozinha, o olhar materno iluminado por um brilho inexplicável. Da família, um quadro roto, esquecido e perdido no fundo do baú.



Imagem de autoria desconhecida.

16.11.08

Persistência


Todos os dias ele regava a rosa.

Que no dia seguinte amanhecia murcha.

Porém, se não a alimentasse todos os dias, amanheceria morta.


Imagem: (crédito na figura).

2.11.08

O enterro de Isolina


O som da chuva acordou-me. O velho telefone soava estridente. Atordoado de sono tentava localizá-lo para atendê-lo. O dia escurecera-se devido à tormenta que precipitava naquela manhã. O telefone continuava a tocar e minhas mãos sonolentas tateavam o que havia sobre o criado-mudo. Senti-o vibrar. Quando o desliguei, senti uma coceira nos meus dedos. Forcei meus olhos embasados de sono: uma borboleta preta. Bateu assas e voou. “Isolina morreu”, disse-me a voz ao telefone.
Levei tempo a compreender, talvez porque meu cérebro acordava aos poucos ou pelo impacto da notícia. Minutos depois, acometeu-me o choque. Isolina estava morta. A boa Isolina estava morta. A querida Isolina estava morta. A velha Isolina estava morta. A preta Isolina estava morta. A gorda Isolina estava morta. Minha querida e boa preta velha Isolina estava morta. Chorei. Chorei como uma criança que perde a mãe, como um velho que enviúva, como quem perde a avó velhinha que assa deliciosos bolos de baunilha.
Quando nasci Isolina já trabalhava na nossa casa. Cozinhava, limpava, cuidava engomava nossas roupas, contava-nos histórias à luz do lampião. Alimentava as galinhas, dava de comer aos porcos e às vezes eu a ajudava a retirar água do poço. Isolina ensinou-me a rezar: uma ave-maria para cada conta de seu rosário branco.
Tinha de ir ao enterro. Vesti meu terno azul-marinho fui à garagem. Abri a porta do carro e outra borboleta negra bateu assas. Num vôo cambaleante, saiu de dentro do veículo, pousou na lapela do meu paletó e no instante seguinte fugiu.
Difícil dirigir. Estrada de terra, o barro no pára-brisa. Estacionei em frente à capela onde ela estava sendo velada. Ao descer, atolei meu pé até o joelho no barro. O guarda-chuva não continha a água que caía. Entrei na capela, Isolina não estava. Só vi as quatro velas apagadas, os pedestais onde seu caixão foi colocado e uma borboleta preta na vastidão branca da parede.
Corri feito um louco para o cemitério. Esqueci a chuva, esqueci o barro, esqueci as pedras da estrada de terra. Zanzei pelas ruelas à procura do túmulo de Isolina. Esqueci as flores. Nem uma margarida murcha em minhas mãos. Puxei do vaso de um túmulo recém fechado um maço de dálias e uma rosa branca. Ao longe, o coveiro e o carrinho com o caixão de Isolina. Corri, tropeçando em minhas pernas. Nada protegia o caixão de Isolina, mas não sei como, não chovia sobre ele. Pelo contrário, sobre seu caixão projetava-se um feixe dourado de luz, um raio de sol rompendo as nuvens pesadas.
Queria ver seu rosto rechonchudo, sua pele negra, seu semblante plácido. Queria ver a boa e velha Isolina pela última vez. Desatarraxei os parafusos de seu caixão, empurrei a tampa com certa força, derrubando-a. Tão logo ela se espatifou no chão, borboletas pretas, médias, grandes, minúsculas, milhares delas, ganharam o céu. Voaram num sublime bater de asas em direção ao sol. No caixão ficou apenas o terço branco de Isolina.

Imagem de autoria desconhecida.

18.10.08

Cause all the stars are fading away


After the crash, I slept for a week or even more – maybe a month I guess. When I woke up, I was tired and lightheaded. My car was almost completely destroyed, and I couldn’t see any bit of life around me.
I walked a lonely road; my shadow was the only one that walked beside me. I walked for miles and miles and hours and hours. Sometimes, I wished some out there would find me. There was none.
At the end of the night, I arrived in a town, a small town. And in the streets the children screamed, the lovers cried, and the poets dreamed. I saw a baby was sleeping so scared to be alone. And I saw a girl who sang the blues. I knew, if she had wings she would fly away, and another day God would give her some. She’s got a smile that seemed to me a kind of hope.
I tried to talk to her, but she ran away. I tried to talk to the children, lovers and poets, but they ran away. Everyone ran away, except the little fish, and he told me I should ask myself why.
The little fish told me to make my way back home and learn to fly. He also told me that men dreams one day to fly. And I had just one chance, one way ticket to the times I had before. I should learn to fly to pursuit my dreams
And I took a rocket ship into the skies, to live on a star dying in the night.


Image: Square, of Bob Kupbens.

5.10.08

O vodu


Tentava entender o que sentia, mas perdia-se na profusão de sentimentos dentro de si. Lhe tinha amor, mas sentia algo diferente disso, embora quisesse justificar que o que sentia era de fato amor. E com aquele boneco nas mãos, lembrando ele, com um fiapo de sua roupa e um cacho de seus cabelos, ela espetava agulhas vermelhas. Ela sabia, dalguma forma, a dor que ele sentia e as vezes que tropeçou a cada espetada. Mas a última espetada, a que deu no peito do vodu, doeu forte em seu coração.


Imagem de autoria desconhecida.

27.9.08

Céu azul


Alçou vôo e sentiu-se leve por demais, capaz de ganhar os sete céus, sentiu-se livre das pequenezas humanas e das mazelas que lhe assaltavam as madrugadas. Alçou vôo e impulsionou-se livre, feliz por ganhar um mundo tão desejado seu; e percorreu o céu bailando pelo espaço, rodopiando feito folha ao vento e deixando-se levar na vastidão do azul. Alçou vôo e sentiu sua alma desprender-se de seu corpo; era sua a liberdade e a vida em essência, era-lhe seu tudo o que buscara dantes. Alçou vôo e não escutou segundos antes a freada e a buzina, como também não sentiu o impacto. Enquanto as pessoas corriam para socorrê-lo em vão, ele alçava vôo a viver a vida.


Imagem retirada de Getty Images.

22.9.08

Florzinha no cabelo


Rodopiante, alegre... a passos cadenciados ela vem e passa no doce balanço do amar. Tímida, recolhida em si, mas capaz de despertar vida. Bela donzela dos olhos doces, meigos, que enfeitiça... Que me dera segui-la, me deixar levar por ela, guiado apenas pela florzinha rosa em seu cabelo.


Imagem de Vanessa Lima.

14.9.08

Tão pó, tão só


Tudo o que tinha guardava numa pequena lata de alumínio; coisas que eram sua vida, cada qual com seu significo, mas miudezas, pequenas lembranças e experiências, porém que lhe fizeram ser o que é.
E para onde ia, carregava a lata, que por causa das estampas, parecia uma casa, porta e janelas nas laterais, a tampa desenha de telhas de barro. Vez por outra abria a lata e remexia suas coisas, com olhar saudoso, e fechava. Certeza daquilo que era sólido e certo.
Numa dessas aventuras lata adentro, tão logo a destampou, começou a ventar, dum vento forte, vigoroso, que aumentava. Na dúvida se fechava ou dali corria, colocou a mão sobre seus pertences para impedir que o vento os tomasse consigo, mas o vento era forte demais e venceu a resistência; varreu dali não só as coisas mais leves como despedaçou tudo o que estava protegido.
Levou-os longe, espalhando-os pelos cantos e curvas ermas e ele sequer pode agarrar entre os dedos um mínimo pedaço de si. Sem sua latinha, sem nada, sem aquilo que lhe fazia ser o que era, tudo pareceu tão pó, tão só.


Imagem de autoria desconhecida.

2.9.08

A musa e o poeta


Às vezes falha-me a pena, acomete-me a estranha sensação de sentar ante a folha em branco e sentir as palavras impulsionarem sem levantar vôo. Como também falha-me a coragem, a capacidade de me entregar aos prazeres do mundo, de dizer as palavras singelas a ela; um medo pueril, uma dúvida acanhada e malévola, uma incapacidade de deixar minh’alma falar. Procurei as respostas certas às minhas perguntas errada, até que me dei conta de que a todo poeta inspira-lhe uma musa.
Saí pelo mundo à procura da minha, numa viagem tresloucada, feito um desvairado a caçar nos olhos de cada mulher a inspiração para minha arte. Tateei no escuro, embrenhei-me por becos e caminhos nunca dantes pisados, no entanto minha musa parecia mais bem escondida do que imaginava. Desenhava-a linda, capaz de preencher meu vazio, de acalentar minhas madrugadas insossas, de alumiar meu pequenino coração.
Ao vê-la perguntei-me: serão os poetas cegos? Minha musa estava ao meu lado, linda como a pintei: de cabelos negros, longos e luzidios, dum mesmo brilho cálido em seus olhos puxados, e pele morena do sol. Minha musa pegou minha alma e me levou pela noite de lua cheia, fulminou certeiro meu coração: fiquei estatelado, hipnotizado feito estátua de pedra. Minha musa me beijou, um beijo carinhoso... gostoso – fiquei querendo mais. Minha musa me inspirou, mas sou mau poeta: não verso, proseio.


Imagem retirada de DecksittersPhotoBlog.

29.8.08

De olhos bem abertos


Hoje dormi sozinho. Hoje dormi, sozinho, como ontem dormi sozinho. E antes de ontem também dormi, sozinho. Acordei todos esses dias e você não estava do meu lado, havia apenas teu cheiro no meu lençol, uma vaga lembrança da tua passada presença.
Dói, sabe disso? dói muito, porque você se foi assim de abrupto como que de mansinho, e levou toda minha vida amarrotada em sua mala.
E todos os dias em que me levanto sozinho, depois de dormir sem você ao meu lado e quando a dor dói mais doída (ou doida?) eu digo para mim mesmo, batendo na minha própria cara: não pense... não pense... apenas esqueça... e volte a dormir, mesmo que de olhos bem abertos.


Imagem de autoria desconhecida.

27.8.08

Pequeno demais


Quando retornou, estava maduro, demasiado, e já firme na vida. De longe, enquanto o carro se aproximava, bisbilhotava pela janela de ansioso. Era a mesma casa de quando partiu, com as paredes caíadas descascando, só agora mais velha. Na varanda as mesmas cadeiras de balanço de sempre, na porta a mesma cortininha de renda de sempre, no jardim as mesmas rosas selvagens de sempre. A cerca, esta estava em ruínas, com as madeiras apodrecidas e já sem o propósito ao qual se propunha.
Numa das cadeiras de balanço, uma senhora, magra, definhando a vida, olhava inerte ao longe, com os olhos azuis perdidos no longe bem longe. Os cabelos já ralos e despenteados eram a certeza que ela esperava sua hora – sem disso saber.
Aproximou-se dela, um tanto cândido, e a senhora esboçou-lhe um sorriso e disse-lhe: viu o meu Jim? o meu pequeno Jim? Quedou o olhar, alisou as mãos enrugadas, porém nada lhe disse.
Entrou na casa e tudo estava como sempre, a sala com os sofás de vime, a cristaleira, os quadros, as cortinas de renda, os relicários espalhados em cada canto, os bibelôs de porcelana. Foi uma olhada rápida, intencionava logo subir ao quarto.
Que estava como sempre: a cama arrumada, os carrinhos de madeira num canto ao chão, a escrivaninha com alguns livros em cima, o armário... tudo impecavelmente simples e limpo, como havia deixado quando partiu. Sob a cama havia uma de suas calças, das curtas, que costumava usar àquela idade.
Abaixou-se e tomou um carrinho de madeira, agora tão pequeno em suas mãos de homem, e rememorou as histórias inventadas quando brincava com ele. Sentou-se na cama e teve a impressão de estar já grande demais para ela. Tudo naquele quarto insinuava-se pequeno; até mesmo o despertador, com ponteiros tão diminutos de ver.
E foi que sentiu o quarto encolher, como se as paredes e o teto intencionassem apertá-lo e sufocá-lo, pois era adulto demais para aquele mundo que deixara, era grande demais para o mundo de sua infância, e nele já não mais cabia. Sentiu dificuldade para respirar, mas a janela também havia ficado menor... menor.
Quis sair daquele quarto, estava sufocando-se nele, estava deslocado nele – não podia mais reviver aquele mundo de há muito deixado. E ao se levantar teve de ser curvar, porque era grande demais para o quarto e ao sair precisou de se abaixar.
Fora, consentiu que aquele quarto e aquela casa haviam ficado tão pequenos que já não cabia mais neles; e já não eram mais seus. Eram do pequeno Jim que fora e por quem a senhora esperava.


Imagem de Philippe Gillotte.

16.8.08

Os robôs


Eram todos robôs, feitos de chapas de aço e com mil circuitos eletrônicos por onde passava aquilo que chamavam de vida. Tudo estritamente mecânico ou eletrônico, exceto os fluidos. Havia robôs quadrados, cilíndricos, espiralados, piramidais. E para tudo um botão ou a combinação de alguns botões: se tinham fome, bastava apertar o botão azul para findar a sensação, se estavam com frio, o botão azul emanava uma onda térmica, se queria queriam casar, o botão vermelho fazia o robô despertar para a paixão.
Um dia sem mais, um robô descobriu-se apaixonado por uma robô, sentiu-se atraído por seu corpo rombóide, seus lábios elípticos inspiravam-lhe beijos sonhados e ele se viu amando-a. Mandou-lhe poemas apaixonados – sim, os robôs também escrevem poemas – rosas, mimos feito de sua própria habilidade, tencionando conquistá-la, mas ela fugia quando o via na rua e sequer correspondia aos seus jogos do amor.
Um dia recebeu um carta; ela não o amava. No entanto, até para findar o sentimento do amor os robôs possuem um botão, que o mesmo que o aciona, e o robozinho buscou em sua casa seu manual de instruções, ou melhor, o manual de instruções dos robôs do seu modelo e número de série, para poder localizar o botão do amor e assim por fim ao sentimento do amor que tinha por aquela robozinha.
Segundo o desenho do manual, o botão ficava no compartimento às costas e era o terceiro da última fileira. Eis que ao abrir o compartimento não encontrou o botão do amor e aí ficou sabendo que apenas o seu número de série, ou seja, apenas ele, havia sido fabricado com um defeito: não possuía o botão do amor.
Ao saber que teria de dês-amar aquela robozinha do mesmo modo que passou a amá-la, sem poder desligar-se em seu botão do amor, se deu conta de que não era um robô, era humano.


Imagem: robo Ding-Bo, brinquedo dos anos 80.

10.8.08

Canarinhos


O casal de canarinhos pulava sassaricando sem muito se importar com o cárcere e nem esquivavam arredios quando a mulher aproximava-se da gaiola para alimentá-los ou trocar o jornal. Eram sua distração, quando não estava enchendo os cochos de alpiste e outras sementes, a mulher colocava-se diante deles para o ouvir o trinado agudo dos bichinhos. Às vezes um tímido piado dum deles já atraia os cuidados curiosos dela.
Os canarinhos foram novidade para os filhos, já adultos, que jamais pensaram em ver a mãe tão dedicada a eles, já que por muito tempo relutou em ter algum animal de estimação – dão muito trabalho, dizia. Mas a mulher com eles estava como se estivesse feliz outra vez e deles cuidava com cautela materna que os impedia de fugir, mesmo que isso significasse colocar alguns cadeados nas portinholas da gaiola.
Um dos filhos perguntou ao pai, como que desejando roubar uma informação mais preciosa: então a mãe comprou canarinhos? Sim, respondeu o pai, depois que você e teu irmão alçaram vôo à vida, ela comprou os bichinhos para alegrar a casa.


Imagem de autoria desconhecida.

1.8.08

Constatação


- De que sente falta?

- Da felicidade que nunca tive.





Imagem retirada da abertura de 'The 4400'.

29.7.08

Nossa história


Você me perguntou por que não carrego tua foto comigo; lembra? você me perguntou isso e eu titubeei em responder: era porque não sabia a resposta; quero dizer, nunca me passou pela cabeça porque não carrego tua foto comigo, mas se você ainda aceitar minha resposta... é que se eu carregasse tua foto, só iria me lembrar de você – não que você não seja importante – e carregando todos esses presentinhos que você me deu (o nariz de palhaço, o chaveiro de cachorrinho, o bilhetinho dobrado em coração, o recado na minha agenda, o perfume que você me deu) eu me lembro de todos os momentos que passei com você e de toda a história que há entre nós dois e tudo o que você passou a significar pra mim e isso faz você muito mais importante pra mim.

Imagem: Heart me, de Shiritsu.

14.7.08

Meninice


O passeio de sempre, pouco mais de três quadras, da casa ao armazém e da venda para a casa. Passeio que costumava fazer umas duas vezes por semana com a mãe. No caminho pouco conversavam, as trocas de olhares eram mais comuns. O passeio lhe rendia alguns doces e o aluguel de um jogo de vídeo-game para distrair a tarde.
Mudava o dia, mas o passeio o mesmo, o mesmo silêncio cúmplice de mãe e filho, os mesmos doces e o mesmo jogo, sempre. E essas eram suas mais doces lembranças da meninice.


Imagem de George Marks, escolhida por Gustavo Muniz.

3.7.08

O clubinho


Haviam fundado um clubinho, os quatro. Por três dias durou o impasse da eleição do presidente, devido a empate entre dois integrantes. Nesses três dias, realizaram nove eleições; em todas o empate. Eis que por fim concordaram que o clube teria dois presidentes e que as decisões deveriam ser tomadas em conjunto. Cada presidente exigiu a si um vice-presidente: os que não haviam disputado a eleição ficaram pois sendo os vice-presidentes.
A tesouraria ficou com o presidente menino e como secretária, a vice-presidente menina. Estipularam que cada integrante do clube contribuiria com cinqüenta centavos por semana, presumindo que em um mês teriam algum dinheiro substancial para começar de jure as atividades do clubinho.
Inventaram as vestimentas: aos presidentes uma manta por sobre os ombros e os vices usariam um lençol, também sobre os ombros. Cada presidente empunhava um martelo, desses de bater carne, como instrumento de decisão: batido o martelo, assim passava a ser.
Faltava-lhes uma sede, talvez se dobrassem as contribuições conseguiriam montar algo, mas os cálculos revelavam que desse modo a sede só ficaria erguida oito anos e meio depois.
Mas sobreveio à presidente menina que bastavam algumas ripas cortadas de árvores que eles montariam uma barraca e cobririam com lençóis e mantas. E assim fizeram; uma barraqueta de dois metros quadrados, iluminada por uma lanterna. Na primeira reunião, todos tiveram que dar a primeira contribuição, mas o vice-presidente menino esqueceu sua parte e foi multado em vinte centavos a ser pago no próximo encontro.
A reunião, considerada extraordinária, terminou com a mais importante decisão do dia: deliberaram os quatro que em quinze minutos começariam a brincar de se esconder. Os presidentes bateram o martelo e os quatro desmontaram a barraca e tiraram as vestimentas protocolares o mais rápido possível para que não perdessem o horário do esconde-esconde.

Imagem: Hide and seek, de Friedrich Eduard Meyerheim.

14.6.08

Boneca de pano


O único brinquedo que não jogou fora, a menina guardou na prateleira mais alta. A mãe, que espreitava de longe não entendeu porque aquela caixa, somente aquela caixa, foi preservada. Mas a menina, ainda menininha, sabia: só poderia usar aquele brinquedo quando fosse mais crescida.
E os anos passaram, naquela velocidade de passar, e a menininha cresceu, virou menina, meninota, mocinha, moça e mulher; enfim adulta. Num dia sem-mais, ela apanhou a caixa do alto da prateleira e dela pegou o brinquedo: uma boneca de pano, um tanto amarelada pelo tempo.
A mulher olhou cuidadosamente a boneca e nos olhos as rememorações dos tempos de menininha voltaram em doce saudade e ela se deixou levar pelas lembranças daqueles anos passados em que era uma menininha e brincava de boneca. A mãe, que espreitava de longe podia ver a filha quase que hipnotizada abraçada à boneca e não entendeu porque agora, crescida, a filha parecia ainda mais criança. Mas a mulher sabia: para brincar com aquele brinquedo, teria de voltar a ser menininha.




Imagem de autoria desconhecida.

5.6.08

Desejo-te


Desejo teu corpo, templo do meu amor maior; desejo tuas fantasias loucas, tua presença certa e tua ausência súbita. Desejo te provocar em carícias, arrancar suspiros gemidos de inquietação, bolinar teu corpo como num passeio pelo descampado, como na brincadeira proibida. Desejo incitar arrepios – breves choques de paixão entorpecente. Desejo-te nua, desejo teus seios empinados, tesos para eu mordiscá-los e beijá-los... Desejo teu corpo quente, entregue a mim em ardente perdição – ai! que nele me perco e em ti me acho.
Desejo teu sexo, traduzido em amor nas horas que são somente nossas. Desejo-te em cima de mim, na perfeita combinação em que somos apenas um; desejo a noite perfeita, o tempo parado, o errado acertado. Desejo-te com minha boca, meus lábios, minha língua, meus dedos, minhas mãos, meu corpo e meu sexo; desejo pelo pouco de mim que há em tudo de ti. Desejo de alma, de coração, de amor, de ódio, de prosa e poesia; no ritmo perfeito que nos embala o amor.
Desejo de amor sincero, incondicional, instintivo, banal; desejo-te pelo ontem, no hoje e para o amanhã. Desejo-te de estado de espírito, por tudo que sou e não foi, por tudo que fui e não sou, pelo amor que me faz querer. Desejo-te.


Imagem de autoria desconhecida.

26.5.08

Suas palavras


Quando parou para tomar fôlego, aproximou-se um velho que se sentou ao seu lado; trazia em suas mãos uma caderneta de capa de couro, já velha, com as pontas meio puídas. Do bolso da camisa retirou um lápis algumas vezes apontado com a ponta bem feita. O velho abriu a caderneta anotou a data na primeira folha em branco seguinte às escritas e encarou-o. Fitou seu olhar vago, sua face triste e abatida, seu corpo tenso e lhe perguntou: que faz aqui?
Ele mergulhou o olhar no horizonte, deixou os olhos marejarem de lágrimas, e falou meio engasgando: esqueço... Deu um breve suspiro e o velho perguntou-lhe de novo: como veio até aqui? Ele suspirou, inspirou fundo numa tentativa de despistar o choro da garganta e disse: vim andando. Veio andando umas boas léguas e meia.
O velho então pediu: escreve aqui no caderno. Ele tomou a caderneta na mão, e por longas linhas escreveu o que sentia e como sentia e porque sentia e quanto sentia, escreveu tentando vencer a dor dos pés cansados e do corpo estafado. Escreveu em linhas tortas e letra garranchada, difícil firmar o pulso.
O velho leu cada frase, meditou cada palavra e disse-lhe: não continue... volte; apenas volte. E antes dele tomar o rumo da volta, o velho rasgou a folha escrita por ele e entregando-lhe completou: sãos suas palavras, deve levá-las consigo.


Imagem retirada de "The line between".

16.5.08

Recorte de jornal


As pessoas na rua a olhavam; com olhar curioso porque algo nela estava diferente, muito embora ela mesma não se sentisse diferente naquele dia. Ou melhor, ela sentia-se um tanto melancólica, nostálgica, até mesmo um pouco absorta, porém não deprimida; e aquele dia era tão-só um dia a mais de trabalho.
Mas foi quando se olhava no espelho do elevador, conferindo se a roupa estava impecável, que descobriu o motivo dos olhares: estava em preto-e-branco. Enquanto o mundo todo à sua volta insinuava seus matizes e suas infinitas tonalidades coloridas, sua pele, seu cabelo, seu lábio, seu olhar e suas roupas oscilavam nas diferentes graduações do cinza.
Ficou um tanto desconcertada, no entanto quê podia fazer? Tentou retocar o batom; sem efeito: seus lábios apenas ganharam um contorno mais definido em tom cinza escurecido. Foi ao banheiro, lavou o rosto, mas na pele a mesma palidez acinzentada.
Dirigiu-se à sua sala, porém sentia-se esvaziada a ponto de sequer conseguir dimensionar o que se passava. E quando tocou a cadeira, o estofado perdeu a cor e assim com cada objeto que tocou: todas aquelas cores vivas, luminosas, vibrantes viraram um punhado de cinzas médios, claros e escuros, indo da plenitude completa das cores até a ausência delas.
Em desespero, chamou pela colega ao lado. Esta mulher até virou-se em sua direção, mas perdeu o olhar ao longe, como se o seu chamado de ajuda fosse apenas um sussurro incompreensível do vento, como se ela fosse alguém congelado no tempo passado. Tão igual, tão igual à moça do recorte de jornal da fundação da empresa emoldurado na parede.



Imagem de autoria desconhecida.

11.5.08

Do bem


– e se a polícia acha que nós somos bandidos?
– eles não vão pensar...
– mas se eles pensam, pai?
– não somos bandidos.
– a gente é do bem?
– é... a gente é do bem.
– os bandidos é que são do mal, né?
– sim.
– mas se a polícia pensa que a gente é mal, a gente vira bandido?
– não, filho... não somos bandidos.
– mas e se a polícia pensa que somos?
– eles não pensam isso da gente.
– por que a gente é do bem, né pai?
– é... porque a gente é do bem.

Imagem de autoria desconhecida.

8.5.08

Vitalidade


Acordou descansada, sentindo-se mais jovem, numa vitalidade há anos esquecida; e animada para caminhada no parque ao sol ainda leve da manhã. Não tinha idéia de quantos anos fazia que acordava com o sol a pino do meio-dia, estafada mesmo tendo dormido por horas e horas.
Ficou em dúvida se corria ou caminhava, mas a vontade de algo mais pesado incentivou-a a correr; começou devagar, mas logo aumentou o ritmo como se preparasse para uma competição. Não sentia cansar: quanto mais corria, mais queria continuar e sentiu que não queria apenas correr, mas desejava também pular, dançar, soquear o ar, dar cambalhotas, rolar no gramado do parque.
Sobretudo, porém, corria feito criança serelepe, esquecendo-se do mundo e imergindo na sua pueril brincadeira da manhã de domingo. E pulava e corria e girava cambalhotas e subia em árvore e dançava feito criança que era; e de fato era criança.
Parou apenas para se refrescar com um picolé, já matutando as próximas brincadeiras que saciaria pelo parque. Foi quando viu uma senhora se aproximar e falar uns bá bá bá bu bu bu, que nada compreendeu; fitou aquela senhora tentando compreender se louca era ou estava lhe mangando. A velha, antes de ir-se, soltou um riso curto, divertindo-se em ver aquele bebê de pouco mais de um ano de idade lambuzar-se com o picolé.


Imagem: There is always hope, de FriskyPics.

4.5.08

Como você me dói


Não de vez em quando... quase sempre. Dói na tua presença e na tua ausência, dói no amor que por você sinto e no ódio que lhe tenho, dói no acertado e no errado. Dói duma dor doída, profunda, aguda e nauseante. Você me dói desse teu jeito falso, desse teu jeito despreocupado, desse teu jeito inocente, desse teu jeito pueril; desse jeito que me consome e me faz mal e me vicia. Você me dói... talvez saiba disso, me dói a ponto de eu me doer de mim, por você.


Imagem de: chromogenic.net

30.4.08

Abismo


Embora pertos, era como se uma lonjura abismal abrisse em feridas entre os dois. Olhar de socorro – no canto do olho o desejo. Se falavam, eram palavras veladas, insinuando-se um ao outro em metáforas desveladas. Se achegavam, o tempo lhes era injusto: logo a interrupção. E quanto mais longe, maior era o grito do desejo e a vontade de ao menos se tocarem. Mas havia esse abismo, na pior hora: a do primeiro encontro. À despedida, sob a união da cumplicidade, o abraço foi-lhes o único alento.

Imagem de autoria desconhecida.

27.4.08

Consciência


– desista...

– ...
– sempre ocupados!
mirou o nada, olhar vazio e em solidão:
– ainda preciso deles.


Imagem: Old resting hand, de Micke Jakobsson.

25.4.08

Nua solidão


Diante do espelho tentava se enxergar, mas sua imagem nada mais era que uma projeção do seu eu, um reflexo turvo que escondia suas angústias numa máscara serena e ligeiramente feliz.
Olhar seu reflexo, era ludibriar-se que a vida era possível, de que a presente solidão era sua companheira das horas neutras da madrugada e de que o sorriso torto estampado na cara espelhava-lhe o mundo que queria que fosse.
Aquela imagem, dalgum modo desconhecido por ele, refratava seus amores sofridos, desilusões, os desejos reprimidos e a tristeza humana recolhida em si. E os dias se lhe somavam, construindo a realidade projetada numa imagem de si.
Mas houve o dia em que não viu sua imagem no espelho; não se sabe como, seus olhos voltaram pra dentro de si e ele viu-se tal qual era: angústias escondidas, amores sofridos, desejos reprimidos e tristeza recolhida. Olhar toda sua desgraça humana fez ruir sua realidade projetada, conhecer-se foi talvez sua pior consciência e o prenúncio da sua anulação: ver-se o certificou de que não era e de que nunca foi.
Quando conseguiu olhar-se no espelho novamente, percebeu que estava imerso num vazio e sua imagem pouco a pouco se desfez em nua solidão.


Imagem: Tire Swing, de Kathleen Connally.

17.4.08

O caderno dos amores traídos


Andava na rua e de repente não conseguiu trocar o passo; a perna ficou pesada demais e ao mesmo tempo dormente. Tentou outra vez e de novo sentiu a perna arrastar e travar, levou as duas mãos à coxa na intenção de forçar o movimento, porém as mãos não firmaram na perna.
Ainda assim teimou em trocar o passo e foi quando caiu embolando em si mesmo. Já não sentia os membros inferiores e também não conseguia controlar as mãos. Ao olhá-las percebeu que as mãos estavam desaparecendo, apagando lentamente, a começar pela ponta dos dedos. Fitou as pernas e viu que os pés já haviam sumido.
De lento, ganhou velocidade e o que quer que fosse aquilo avançava rápido, devorando as pernas e os braços, subindo pelo tronco, atingindo o peito. Que sufocava e apertava.
No mesmo instante, num lugar um tanto longe dali, uma mulher, de face contraída entristecida, de seu caderno dos amores vividos, apagava-o de sua existência.


Imagem de autoria desconhecida.

8.4.08

A partida


Decidiu partir. Não fez mala, nem separou roupa. Ajuntou alguns objetos e enterrou-os numa gaveta qualquer. Ainda encarou seu passado, que o observava de espreita. E percorreu cada cômodo, tocando com a ponta dos dedos as paredes e os móveis; última tentativa de recolher o pouco de vida sua espalhada pela casa. Perdeu-se olhando algumas fotografias, outras marcas do seu passado que voltava para enfrentar-se com sua vida. Aos poucos tudo virou um inquietante mausoléu. Ao abrir a porta, um corredor longo tinha sua escuridão quebrada por um ponto claro. Antes de fechá-la, apagou a luz e os seus olhos pararam de brilhar.


Imagem de autoria desconhecida.

3.4.08

Aniversário



Disse ela:


- Um ano, hein!


- ... O primeiro ano. - corrigiu ele.



Imagem: Andressa Amaral.

28.3.08

Viajo, viajo, viajo


Há outra Curitiba perdida, a Curitiba de to-dos os dias: a Curitiba da Rua XV, do Largo da Ordem, do Jardim Botânico, do Parque Barigüi, do prédio histórico da Uni-versidade Federal do Paraná. A Curitiba do Teatro Guaíra, da Ópera de Arame, da Ponte Preta.
A Curitiba dos imigrantes portugueses, alemães, poloneses, italianos, ucranianos, japoneses, sírios e libaneses. A Curitiba da vina, do penal, do piá, da gasosa, dos polacos, do chineque, do papel de borrão.
A Curitiba perdida do Dalton Trevisan, a Curitiba boêmia do Paulo Leminski, a Curitiba lírica da Helena Kolody, a Curitiba simbolista do Emiliano Perneta; a Curitiba paranista do Alfredo Andersen, a Curitiba do contemporâneo Poty Lazzarotto.
A Curitiba do barreado, do pinhão, da polenta com frango frito, da bolacha Maria, da gengibirra e da bala Zequinha. A Curitiba do Mercado Municipal, do circuito gastronômico de Santa Felicidade, da confeitaria Schaffer, do Bar do Alemão.
A Curitiba da Borbleta 13, do Oil Man, da Gilda, da Maria Bueno, do Homem do Gato, dos Cavalheiros da Boca Maldita. A Curitiba “província, cárcere, lar, que com amor, viajo, viajo, viajo”.

25.3.08

Pueril alegria


Era esquisita a sensação do couro nos seus pés, parecia pegajoso, que coçava. Eles brilhavam, novos, reluziam a luz foscamente. No pisar com um dos pés era como andar sobre espuma e era como se ele nem pisasse de fato; ele andava como astronauta pisando cada pé por vez, tocando a planta dos pés, do calcanhar aos dedos.
Os pés esquentavam, dum calor aconchegante; correu... pulou... correu e pulou, pequeno polegar a ganhar um mundo desconhecido. Rodopiou, saciou, quedou estripulias. A pueril alegria de vestir o primeiro par de calçados aos oitenta anos.


Imagem: Um par de sapatos, de Vicent Van Gogh.

21.3.08

Suicídio


Sonhou que se matava e acordou assustado, tenso, com o gosto da pólvora na boca. Refeito do sonho, sentiu o sangue escorrer-lhe na nuca.

Imagem: O suicídio, de Eduard Manet.

19.3.08

O anjo torto


Depois de terminar cada boneco, o criador deixou-os em repouso numas formas na grande mesa da criação a tomarem viço. Tempo depois algum anjo os levaria ao forno da vida. Mas nesse pequeno intervalo, entrou no local um anjo torto e, escolhendo aleatoriamente, começou a deformar alguns bonecos; entortou a perna de um, encurtou a de outro, virou o braço de mais outro, torceu a mão do que estava mais adiante, tirou um pouco do braço do próximo. Após isso, levou as formas à fornalha, para que cada boneco, os perfeitos e os defeituosos, ganhassem vida.

Imagem de Nuno Souza (detalhe).

13.3.08

Me dê a mão


Vem, disse a senhora estendendo a mão. O velho esticou o braço, descobriu-se as pernas e levantou-se. Com o passo cambaleante, tomou sua mão, olhou nos olhos da senhora e sussurrou meu amor. O filho, sentado numa cadeira ao lado do leito do pai, apenas viu o velho estender a mão, balbuciar e deixá-la desfalecer em sinal do corpo sem vida.


Imagem de autoria desconhecida.

6.3.08

O último retratinho


No final, quis levar da vida o último retratinho. A cadeira do lado ficou vazia, como sempre esteve.



Imagem de autoria desconhecida.

1.3.08

Prêmios Rubens Mazza e Chuchu de Ouro


Interrompo a temática do blog para outorgar os Prêmios Rubens Mazza e Chuchu de Ouro para os filmes do 8º Prêmio Universitário Trash Zé do Caixão - Putz.


PRÊMIO RUBENS MAZZA
Melhor Filme Trash: Pizza Hurt
Melhor Filme: Lei da Atração
Melhor Direção: Lei da Atração
Melhor Ator: Guilherme (Pizza Hurt)
Melhor Atriz: Gabriela Mateos (Lei da Atração)
Melhor Ator Coadjuvante: Freddy (Patacoada)
Melhor Atriz Coadjuvante: Cynthia Benini ([Des]caminhos do amor)
Melhor Ator Inútil: Barwoman em Lei da Atração
Melhor Cena: Bin Laden (A Gargalhada)
Melhor Cena "Ai, mi fódi!": Romano e Hippieta
Melhor Trilha Sonora: Lei da Atração
Melhor Roteiro: Lei da Atração
Melhor Edição: Lei da Atração
Melhor Edição de Som: Sofia Dantas
Melhor Fotografia: Aluga-se
Prêmio de Originalidade: Sombras em Aluga-se

PRÊMIO CHUCHU DE OURO


Pior Filme: Curitiba, eu te amo
Pior Direção: Curitiba, eu te amo
Pior Ator: Cícero (Curitiba, eu te amo)
Pior Atriz: Repórter de Curitiba, eu te amo
Pior Clichê: música do filme 007 em Patacoada
Pior Edição de Som: Curitiba, eu te amo
Pior Trilha Sonora: O Lerdo

28.2.08

O menino que caiu do céu


Vivia no céu, o qual fez seu mundo sabe-se lá há quanto tempo, talvez da época em que o próprio tempo era apenas a vaga noção do amanhã. E era menino, com toda sua meninice e suas brincadeiras de menino. Vestia uma grande casaca militar, dum tamanho para adultos, com suas insígnias de marecha-tenente-corenel da constelação de órion e perdia suas longas horas acordado a brincar na vasta imensidão anil com seu carro deslizante feito de nuvens. Às vezes até se esquecia das pessoas tão formiguinhas andando em záz-trás na terra.
Delas se lembrava quando acionava a buzina de trovão do carro deslizante, fazendo com aquelas pessoinhas corressem ainda mais imaginando a chuva vindoura. Além disso, tinha o mundo do céu ao seu dispor.
E quando aprontava as bolinhas de nuvem para jogar sobre as pessoinhas lá embaixo – bolinhas que ganhavam potência e atingiam-nas em vendaval – ouviu o ressoar dos tambores e de gritaria ao longe. Forçando os olhinhos conseguir ver: se achegava uma banda trazendo ilustres convidados. Quando se aproximaram o arauto do rei de ouros bradou: eis nossos convidados em visita a vossa excelência o marechal-tenente-coronel da constelação de órion. Eram eles o papai noel, o coelhinho da páscoa, o saci-pererê, o boitatá, a cegonha, o monstro do armário, o rato do dente e o cão das chupetas.
O menino pouco se importou, nem parou de enrolar suas bolinhas de nuvem; o arauto do rei de ouros chamou-lhe a atenção por entre os dentes: excelência, atenda vossos convidados. O menino respondeu-lhe em desdém, dando de ombros: eles nem existem.
E nesse mesmo instante, caiu do céu como se um abismo tivesse sido aberto sobre seus pés, desceu girando sobre si próprio numa velocidade ao mesmo tempo lenta e baixa. Ao cair no chão, escutou-se um baque abafado. Tentou se levantar, mas tão velho seu corpo não conseguiu se pôr de pé e sem forças pereceu.

Imagem de autoria desconhecida.

21.2.08

O fantasma da infância


Quando acordou, ainda de madrugada, encontrou o pai dormindo sentado na poltrona, cabeça de lado tombada no encosto. Aproximou-se devagar, segurou a respiração e cravou o fio da faca na sua garganta, cortando-a lentamente. O sangue esvaiu rápido, não jorrou, mas escorreu forte o suficiente para sujar sua mão e parte do braço.
O pai agonizou, estrebuchou em espasmos, mas não conseguiu reagir, ele pensou tê-lo visto gritar, mas não havia como a voz escapar-lhe da boca. O pai abriu os olhos e encarou-o, num olhar ameaçador e ele sabia que era de fato uma ameaça e por isso cravou a faca mais forte, provocando no pai o último espasmo de vida. Vida esta que se foi rápida, como planejada.
Sentiu prazer, prazer em sentir o sangue escorrer por seus dedos, por ver o pai sem reação, encurralado e desprotegido. Sentiu prazer em provocar-lhe a morte, em escutar o rangido da faca nas artérias e na faringe, em escutar inaudível e abafado o grito de socorro. Não teve piedade, nem complacência, que eram dos fracos, mas o olhar ameaçador do pai lhe incomodou.
E lembrar-lhe, do pai lhe encarando segundos antes de ficar inconsciente e morrer, incomodou-o e o perturbou; encolheu-se num canto da sala e recolheu seu prazer, resignando-se: amanhã teria de matá-lo de novo, o seu fantasma da infância.

Imagem de iNeedChemicalX.

13.2.08

Saudade


Saudade. É isso que sinto cá, dentro. Saudade dos tempos que enrolava meus dedos no seu cabelo; de quando ficava a imaginar meus beijos na sua boca e de me jogar numa idéia desvairada por onde ele me leva. Agora ele está longe, num canto onde minhas idéias de lonjura nem fantasiam direito, foi-se na surdina, em aviso e despedida... que tenha me levado consigo.
Não há como não sentir nesse dentrinho de minh'alma esse pouco de saudade, que de pouco já é muito, demasiado e sofrido, não como um vazio, mas um cheio incompleto, capenga duma perna, cego dum olho, tombado de meio de lado. Que dá uma coisa ruim...
E só de me lembrar, eriça os pelos da minha nuca, como se me apaixonasse por ele pela primeira vez, como se sentisse seu beijo subir meu pescoço na primeira escalada, como se ele me envolvesse nos braços como no primeiro abraço, como se meus lábios descobrissem os seus, como se eu olhasse nos seus olhos e me visse dentro dele.
Saudade. Isso que sinto e queria não sentir, porque é apenas isso que é: saudade, nostalgia dum tempo que foi, não é mais.

Imagem de autoria desconhecida.

8.2.08

Paixão

Falas em paixão;
mas que há entre o pai e o chão?



Imagem: Chão (2006), de João Tito.

31.1.08

Sob a nevasca


Tenho frio, disse o menino. O velho retrucou em grunhido: humpf; e voltou a dormir. O menino sentou-se na cama e puxou o cobertor que estava sob os pés do velho; o velho despertou e disse: não! este cobertor é meu, onde está o que é teu? O cobertor do menino estava roto, puído e com alguns rasgões, era curto e fino, deixava seus pés descobertos, aumentando a sensação de frio; o menino novamente tentou pegar o cobertor que havia aos pés do velho, mas desta vez levou um tapa forte na mão. O velho puxou a coberta para o meio de suas pernas, virou-se e dormiu.
O menino levantou-se da cama e aninhou-se num canto do quarto, comprimindo-se ao máximo para se aquecer e também conseguir se cobrir com seu pedaço de pano. Não conseguiu dormir, acordou em meio ao frio que lhe cortava os pés. Calçou os sapatos gastos, abriu a porta e saiu. Antes olhou para o velho dormindo na cama, não com raiva, nem tristeza, com pena. Fora estava tudo coberto de neve, duma brancura assustadora e a nevasca era intensa, o vento forte, mas ele teria de ser mais forte se quisesse vencer o frio e caminhou na escuridão da noite, perdendo-se na neve. O velho não levantou, sequer deu pela falta do menino.
O menino seguiu seu rumo e caminhando na neve foi como se entrasse num túnel, um longo e silencioso túnel e não se percebeu que quanto mais nele andava, mais envelhecia. Sua única intenção era vencer o frio e, embora frio estivesse e nevando também, não sentia a neve grudar em suas roupas, nem congelar ao redor de sua boca. Era mais forte que o frio e o frio foi sendo vencido. Quando o sol nasceu já não havia mais a nevasca nem o vento cortante e ele já não sentia os dedos doerem.Quando parou para ver o horizonte, o sol nascendo ao longe, percebeu que havia envelhecido e era homem feito, com a barba grande e o corpo maduro e sentiu-se vivo, mais vivo que antes, sentiu-se vencido e fortalecido. Tomou fôlego e continuou seu rumo, livre e solto, leve para seguir seu rumo. Mas ao segundo passo ouviu lhe chamarem: menino... menino... Era o velho, agora mais velho, que vinha ao seu encontro; agarrando-o em seus braços disse-lhe: leva-me contigo menino... não me deixa só. O menino desvencilhou-se do velho e disse: não estás só, tens teu cobertor; e partiu deixando o velho para trás.


Imagem de autoria desconhecida.

20.1.08

Maldição


Mil raios caiam sobre o dia 12 de outubro de 1974. Que o Senhor do Tempo rasgue a linha dos acontecimentos e fulmine da história essa data, vaporizando todas as suas horas de modo que nenhum minuto torrado sobre como testemunha da história. Que o fatos deste dia se dissolvam como o açúcar na água e nada do ocorrido nas suas vinte e quatro badaladas pulule a mente dos que vivem. As trombetas dos Anjos Vingadores soarão ensurdecendo todos que proferirem o nome do dia. Aqueles que ousarem enganar as engrenagens do rumo da história para tentar recuperar a memória deste dia inexistente terão náuseas, perderão as capacidades físicas e acabarão igualmente anulados. Os brinquedos dados às crianças nas primeiras horas da manhã deste dia desaparecerão. Os beijos trocados pelos casais apaixonados lhes serão retidos. Os moribundos não morrerão, desencarnando no dia seguinte. Às parturientes se aumentará um na contagem da gestação. Os encontros não se concretizarão e tudo, exatamente tudo, que ganhou luz, cor, forma, suspiro e gemido, felicidade e tristeza, sendo passível de lembranças posteriores, nada terá efeito existencial. A Terra dormirá no dia 11 e acordará no dia 13 sem que alguém perceba o dia que nunca existiu. As referências escritas desse dia serão apagadas, mostrando apenas um vazio branco que também se refletirá na cabeça dos que ousarem puxar qualquer mínima lembrança deste dia.


Imagem: Luca Guglielmo.

18.1.08

A boca e o pescoço


Conta-se que há muito tempo havia uma boca peralta e solitária, que perdia seus dias a vagar sem rumo e numa de suas andanças ela encontrou uma curva, uma ligeira curva que nunca havia avistado antes.
Achegou-se devagarinho, encostou seus lábios e percebeu se tratar de um pescoço, naquela parte que horrivelmente foi chamada de cangote, e ali sentiu um calorzinho aconchegante, mas peralta que era, essa boca contraiu-se num biquinho e assoprou.
Assim nasceu o arrepio que mais danadinho ainda saciou por aquele pescoço, arrepiando os pelinhos mui diminutos e eriçando a pele e, embestado, correu pela coluna, descendo em rodopios.
Porém, o pescoço assustou-se, quem era aquele que lhe provocava aquela sensação de torpor? aquele gostoso e inquietante formigamento? e que ousou invadir-lhe o resto do seu corpo assim sem consentimento? Indignado virou-se para que os olhos pudessem flagrar o abusado. Eis que ao virar, mui bruscamente, os olhos viram-no e os lábios encontraram aqueles lábios ousados e quando intencionou protestar, calou-se, porque as palavras não vieram. E do encontro dos lábios, tão pertinhos, tão juntinhos, quase colados, cresceu a vontade, feito bolo em forno quente, e da vontade nasceu o beijo, beijo buscado pela boca peralta e que também saciou arrepios no pescoço.


Imagem de autoria desconhecida.