29.8.10

Construção


Era véspera de véspera de Natal, mas a obra não podia parar. Alheia à cidade em ritmo de compras, ele assentava os tijolos como de habitual, embora as ideias se perdessem na ceia com a família amanhã. Talvez ainda conseguisse comprar o presente dos filhos na rodoviária.
Assim que terminou o almoço foi a um telefone público e ligou para casa:
“Chego aí amanhã cedinho”, avisou.
Empolgou-se; o coração, feliz. Colocou o telefone no gancho. E de ímpeto, atravessou a rua, sem ver o ônibus biarticulado que vinha.
A ironia é que ele se chamava Natalício.

Imagem de autoria desconhecida.

20.8.10

Alucinação


Não te vi chegar; ainda sonolento me dei conta de tua presença em minha cama – você me abraçava e me dava conforto. Lembro-me de que deitei sozinho, procurando preencher o espaço que viria a ser teu esparramando-me na cama. Jamais sonhei que num átimo você, sorrateiro, me faria companhia.
Ainda me pergunto como conseguiu se espremer no pouco espaço que havia; de tanto dormir sozinho fiz do vazio um canto suficiente para mim. De tanto esperar por alguém, deixei de ficar acordado esperando a tua chegada.
Mas você veio, do longe desconhecido e eu não te recebi. Deliciosamente, você se achegou em meus braços, invadindo o lugar reservado que roubei de você. Teu calor aquiesceu meu coração e tive a certeza de que você veio para não partir.
Às vezes penso que estou atordoado, dopado com algum elixir exótico, que tua presença é uma sublime miragem, que o teu toque é algum efeito misterioso. Prefiro assim; prefiro tua presença inventada à tua ausência verídica. E espero que você tenha trazido mais deste elixir, porque deste efeito alucinógeno quero não acordar.


Imagem de autoria desconhecida.

13.8.10

A rosa e o jardim


Virou-se, olhou para trás, mas nada viu. Continuou o caminho. Sentiu uma brisa arrepiar a nuca e logo em seguida o mesmo sussurro: “a rosa!”. Voltou a olhar para trás, sem nada ver. Julian Gasmar quedou a cabeça naquele tique costumeiro e voltou a se concentrar nos pensamentos vagos. Não delongou e teve a impressão de ouvir o mesmo sussurro.
Olhou ao redor certo de que havia apenas ele por aquelas bandas; ninguém mais de esgueira numa sombra qualquer. Estava ouvindo coisas, pensou. Mas não... logo a sua frente apareceu um velho, de óculos escuros e trajando o mesmo avental que o botânico usava.
“As rosas!”, disse ele. E apontou para sua direita.
Julian Gasmar acompanhou os dedos com o olhar e vi aparecer diante dos seus olhos um jardim imenso, coberto de rosas de todas as cores. Quando intencionou inquirir o velho, ele já havia desaparecido.
Caminhou em direção aquele jardim. De início não mensurou o quanto longe era e nem por que estava indo naquela direção. Apenas foi. Mas já caminhava por um tempo demais passado quando percebeu que o jardim parecia ficar cada vez mais longe. Começou a correr, na tentativa de vencer o tempo e avançar espaço; se pudesse correria mais que a velocidade da luz. E correu, tão chispado, tão veloz que quando parou já estava no meio do jardim, rodeado por aquelas rosas todas.
Fitou o seu redor, mirando quantas rosas pudesse e sorriu, imaginando que elas eram todas suas. Então ouviu o sussurro de novo: “as rosas!”. Procurou o velho e não o viu. E de repente as rosas todas começaram a desaparecer. De repente tudo que foi dito se sublimou, tudo que ele viu se desmanchou e tudo o que ouviu foi tão só a voz da brisa.
De teimoso, tentou assegurar ao menos uma rosa, mas esta petrificou e se desmanchou em cinzas. E o jardim voltou a ser a cidade que era antes.

Imagem de: Johana Svoboda.