27.4.09

Apelo


Mãozinhas trêmulas, olhar enuveado. Quando ele foi se despedir ela disse: "a nonna está esquecida das coisas, mas não se esqueça da nonna".




Imagem: Semenáček, de Oldřich Šístek.

14.4.09

Lembrança viva


Recostado num banco de praça, abstraia o além na tênue linha fina do horizonte. As idéias, iam no alémlém, revoando papel ao vento. No olhar, uma vidrez opaca, o facho baixo, a profundidade escura, ermo triste. Nada pensava de traduzível, as idéias tão-só desprendiam e desmanchavam-se; nem o olhar as caçava. O céu sem pássaros, sem nuvens brancas, sem a faixa de amarelo ouro – o entardecer era uma ligeira pincelada de cinza esfumaçado. Não piscava, nada fitava. As idéias, talvez um quadro parado na memória.
Senta uma moça à sua direita e ele erige um muro alto: barreira intransponível. A moça fita seu olhar, encara-o. Vê-se perdida naquele breu sufocante. Ela olha o horizonte e acompanha uma lembrança, que flutua. Lembrança dele: do amor de que se esquecera. Com a ponta dos dedos, pega-a e equilibrando-a traz a si. No ar, enrola-a e, quando bem redondinha, prende-a fechando a mão. Ali esquenta e a lembrança brilha. E vencendo a muralha, ela toca seu peito, devolvendo-lha viva.
E ele sente seu coração pulsar; por ela.




Imagem: Balboa Liles de Paul Sapiano.

7.4.09

Tempo passado


O sol marcava o meio-dia quando chegou à casa da avó. Depois de anos a senhora abandonaria aquela casa; ia ajudar-lhe com a mudança. Percorreu o jardim abandonado contornando a casa até alcançar a porta dos fundos. À escuridão da sala, um golpe de luz fazia breu. A avó não estava. Abriu a geladeira e pegou um jarro d’água, serviu-se um copo e foi à sala. Do sótão, o avô perguntou-lhe: é você?
Nada respondeu. Abriu uma janela. Atravessou a sala e abriu outra, mas apenas em meia veneziana. Sala grande, alta, aconchegante, com móveis antigos, alguns cobertos com lençóis, outros com pó. Duma gaveta aberta, tomou um álbum. Disse-lhe o avô: achei umas fotos antigas que coloquei nele.
Sentou-se no sofá e o abriu. As primeiras fotos mostravam uma época que só existia na lembrança de algumas pessoas: uma família unida, reunida e amiga. Não havia fotos decerto das desavenças, das invejas, dos conflitos que corroeram aquele tempo já apagado da lembrança da maioria. Outras perpetuaram um grande almoço, agora com os netos. Os retratos mais recentes congelaram o casal vivendo em famílias diferentes. Uma única foto persistia em avisá-los família: um lanche dos avós com os netos, guris.
Não havia nada de novo naquele álbum. Havia, porém, um tempo passado que evoluía revelando a decadência familiar. Havia um tempo passado tolo, um tempo passado que não pode ser revivido para amanhecê-lo melhor. Um tempo passado que causa um mal-estar súbito, que retira as ações e mergulha no devaneio e na busca dos porquês. Um tempo passado autofágico.
Quando o avô desceu do sótão, dormia no sofá, desajeitado. Numa das mãos, a foto do avô, como se o agarrasse para si. O avô aproximou-se dele; uma forte brisa entrou na sala, trazendo uma veneziana de madeira que bateu em estrondo na janela. O fraco vento arrepiou os pêlos de seus braços. O avô beijou-lhe a testa e um arrepio correu-lhe a coluna, estremeceu-lhe o corpo. Acordou e deparou-se com a avó. Que lhe disse: calma deve ter sido apenas um sonho; talvez sonhaste com teu avó.
Olhou então a foto do avô em suas mãos. E recolocou no álbum aquele tempo passado que havia despertado.




Imagem de autoria desconhecida.

3.4.09

Da torre de Antonina


Acudam El-Rey, acudam-no, bradava o arauto. El-Rey havia deixado a guarda, desmontara a vigília do alto da torre de Antonina e os navios alemães bombardearam o forte. Quanto tempo, quantos anos, quanta horas perdidas, quanto alerta. Uma milha a mais e os alemães seriam derrotados, lamentava a corte. Agora o caminho estava aberto para a investida germânica; minutos e Curitiba capitularia.
E chamaram o médico da corte e trouxeram o general, comandante da brigada. Haveriam de esperar que o inimigo alemão pusesse a cabeça de fora da toca para atacar-lhe em revés. Mas e El-Rey, sobreviveria ao ataque? Mas e El-Rey, comandaria forte o contra-ataque?
E disse o general, comandante da brigada: ataquemos pelo sul, protejamo-nos na base da torre, reforcemos o forte, que um só golpe liquidamos o invasor. E disse o médico: salvaguardemos El-Rey, salvemos-lhe a vida, com El-Rey em vigia, Curitiba não capitula.
E El-Rey remonta a guarda e o exército se aglutina. Quanta movimentação, quanto suor, quanta tática traçada, quanta força demonstrada. E soa o sino da igreja a melodia da vitória, soa o sino da capela a música da reviravolta: a guerra quase perdida agora está vencida. E do alto da torre de Antonina, El-Rey vigia: protege seus súditos, protege seu castelo; brilha-lhe a astúcia, brilha-lhe a coroa.




Imagem: Torre de Belém, de Ricardo Gil.