28.2.08

O menino que caiu do céu


Vivia no céu, o qual fez seu mundo sabe-se lá há quanto tempo, talvez da época em que o próprio tempo era apenas a vaga noção do amanhã. E era menino, com toda sua meninice e suas brincadeiras de menino. Vestia uma grande casaca militar, dum tamanho para adultos, com suas insígnias de marecha-tenente-corenel da constelação de órion e perdia suas longas horas acordado a brincar na vasta imensidão anil com seu carro deslizante feito de nuvens. Às vezes até se esquecia das pessoas tão formiguinhas andando em záz-trás na terra.
Delas se lembrava quando acionava a buzina de trovão do carro deslizante, fazendo com aquelas pessoinhas corressem ainda mais imaginando a chuva vindoura. Além disso, tinha o mundo do céu ao seu dispor.
E quando aprontava as bolinhas de nuvem para jogar sobre as pessoinhas lá embaixo – bolinhas que ganhavam potência e atingiam-nas em vendaval – ouviu o ressoar dos tambores e de gritaria ao longe. Forçando os olhinhos conseguir ver: se achegava uma banda trazendo ilustres convidados. Quando se aproximaram o arauto do rei de ouros bradou: eis nossos convidados em visita a vossa excelência o marechal-tenente-coronel da constelação de órion. Eram eles o papai noel, o coelhinho da páscoa, o saci-pererê, o boitatá, a cegonha, o monstro do armário, o rato do dente e o cão das chupetas.
O menino pouco se importou, nem parou de enrolar suas bolinhas de nuvem; o arauto do rei de ouros chamou-lhe a atenção por entre os dentes: excelência, atenda vossos convidados. O menino respondeu-lhe em desdém, dando de ombros: eles nem existem.
E nesse mesmo instante, caiu do céu como se um abismo tivesse sido aberto sobre seus pés, desceu girando sobre si próprio numa velocidade ao mesmo tempo lenta e baixa. Ao cair no chão, escutou-se um baque abafado. Tentou se levantar, mas tão velho seu corpo não conseguiu se pôr de pé e sem forças pereceu.

Imagem de autoria desconhecida.

21.2.08

O fantasma da infância


Quando acordou, ainda de madrugada, encontrou o pai dormindo sentado na poltrona, cabeça de lado tombada no encosto. Aproximou-se devagar, segurou a respiração e cravou o fio da faca na sua garganta, cortando-a lentamente. O sangue esvaiu rápido, não jorrou, mas escorreu forte o suficiente para sujar sua mão e parte do braço.
O pai agonizou, estrebuchou em espasmos, mas não conseguiu reagir, ele pensou tê-lo visto gritar, mas não havia como a voz escapar-lhe da boca. O pai abriu os olhos e encarou-o, num olhar ameaçador e ele sabia que era de fato uma ameaça e por isso cravou a faca mais forte, provocando no pai o último espasmo de vida. Vida esta que se foi rápida, como planejada.
Sentiu prazer, prazer em sentir o sangue escorrer por seus dedos, por ver o pai sem reação, encurralado e desprotegido. Sentiu prazer em provocar-lhe a morte, em escutar o rangido da faca nas artérias e na faringe, em escutar inaudível e abafado o grito de socorro. Não teve piedade, nem complacência, que eram dos fracos, mas o olhar ameaçador do pai lhe incomodou.
E lembrar-lhe, do pai lhe encarando segundos antes de ficar inconsciente e morrer, incomodou-o e o perturbou; encolheu-se num canto da sala e recolheu seu prazer, resignando-se: amanhã teria de matá-lo de novo, o seu fantasma da infância.

Imagem de iNeedChemicalX.

13.2.08

Saudade


Saudade. É isso que sinto cá, dentro. Saudade dos tempos que enrolava meus dedos no seu cabelo; de quando ficava a imaginar meus beijos na sua boca e de me jogar numa idéia desvairada por onde ele me leva. Agora ele está longe, num canto onde minhas idéias de lonjura nem fantasiam direito, foi-se na surdina, em aviso e despedida... que tenha me levado consigo.
Não há como não sentir nesse dentrinho de minh'alma esse pouco de saudade, que de pouco já é muito, demasiado e sofrido, não como um vazio, mas um cheio incompleto, capenga duma perna, cego dum olho, tombado de meio de lado. Que dá uma coisa ruim...
E só de me lembrar, eriça os pelos da minha nuca, como se me apaixonasse por ele pela primeira vez, como se sentisse seu beijo subir meu pescoço na primeira escalada, como se ele me envolvesse nos braços como no primeiro abraço, como se meus lábios descobrissem os seus, como se eu olhasse nos seus olhos e me visse dentro dele.
Saudade. Isso que sinto e queria não sentir, porque é apenas isso que é: saudade, nostalgia dum tempo que foi, não é mais.

Imagem de autoria desconhecida.

8.2.08

Paixão

Falas em paixão;
mas que há entre o pai e o chão?



Imagem: Chão (2006), de João Tito.