23.5.09

O mar


Sentaram-se na areia a tentar enxergar na escuridão da noite já adiantada as ondas quebrantando na areia. Vez em quando, uma e outra rompiam em marulhar no alto-mar.
Não havia lua, nem aquela paisagem bela com fogueira, barraca e outras coisas que os amantes costumam montar para uma noite de amores na praia. Eram apenas os dois, a olhar o mar calmo. Não se abraçaram, porém, nem sentaram coladinhos lado a lado.
Naquela noite, lá em casa, senti-me atraída por você, disse trazendo lá do alto mar uma daquelas ondas que arrebenta destrutiva. Pegou na mão dela, permitindo sentir os dedos gelados de suor e conduziu-a ao peito. O coração, este sim estava como dizem todos a mil, batendo acelerado, nervoso, talvez estivesse esse coração num barco a deriva lá no meio do horizonte sendo cambaleado pelas ondas que teimavam em derrubá-lo.
Olharam-se nos olhos e sua boca ensaiou um sorriso maroto, meio moleque, safado, mas inescapável, completando a frase que havia dito.
"Não imagina como esperei essa frase", respondeu. E no mesmo agito nervoso do mar, encontraram-se os lábios, as mãos se entrelaçaram, os corpos se atraíram, os olhos deixaram-se sonhar.




Imagem de Emília Duarte.

13.5.09

Museuzinho


Como num museu, guardou tudo no altar-mor do seu coração. Guardou os símbolos, os ícones, as cartas; lembranças dum passado vivo cambaleante. Um nariz de palhaço numa redoma, o chaveiro de cachorrinho numa redoma, a cartinha da viagem numa redoma, a pedra do lago numa redoma; seu próprio coração numa redoma. A primeira foto num quadro à parede, a imagem do natal num quadro à parede, a última foto num quadro; uma galeria inteira de quadros em memória. Guardou até a rosa, que deixava ao lado do nome. E tu, que guardas dele?




Imagem de autoria desconhecida.

6.5.09

Os três homens sábios


Quando via seu passado, era criança: cambaleante nos passos mas certo na caminhada. Era garoto miúdo, devia ter lá uns três anos de idade. Vestia calça preta, camisa branca e suspensórios e a cada passo parava para pegar algo do chão. Seu passado era a descoberta do mundo. Que não lhe parecia hostil nem perigoso: era um espaço com o qual se familiarizava e aos poucos torna aconchegante.
O futuro, mirava aos olhos dum velho. De passos lentos e mãos trementes, arquejado porque carregava às costas o peso da vida conhecida e experimentada. Trazia nas rugas as marcas da certeza de ter desbravado o mundo. Vestia também calças pretas, camisa branca e suspensórios, só que em tamanhos maiores. Seu era a fortaleza com a qual sustentava o que viveu e aprendeu.
No presente, era um homem incomum, que com as certezas do velho voava nas descobertas da criança.


Imagem: 3 wise man, de Elizabeth Price.