31.1.08

Sob a nevasca


Tenho frio, disse o menino. O velho retrucou em grunhido: humpf; e voltou a dormir. O menino sentou-se na cama e puxou o cobertor que estava sob os pés do velho; o velho despertou e disse: não! este cobertor é meu, onde está o que é teu? O cobertor do menino estava roto, puído e com alguns rasgões, era curto e fino, deixava seus pés descobertos, aumentando a sensação de frio; o menino novamente tentou pegar o cobertor que havia aos pés do velho, mas desta vez levou um tapa forte na mão. O velho puxou a coberta para o meio de suas pernas, virou-se e dormiu.
O menino levantou-se da cama e aninhou-se num canto do quarto, comprimindo-se ao máximo para se aquecer e também conseguir se cobrir com seu pedaço de pano. Não conseguiu dormir, acordou em meio ao frio que lhe cortava os pés. Calçou os sapatos gastos, abriu a porta e saiu. Antes olhou para o velho dormindo na cama, não com raiva, nem tristeza, com pena. Fora estava tudo coberto de neve, duma brancura assustadora e a nevasca era intensa, o vento forte, mas ele teria de ser mais forte se quisesse vencer o frio e caminhou na escuridão da noite, perdendo-se na neve. O velho não levantou, sequer deu pela falta do menino.
O menino seguiu seu rumo e caminhando na neve foi como se entrasse num túnel, um longo e silencioso túnel e não se percebeu que quanto mais nele andava, mais envelhecia. Sua única intenção era vencer o frio e, embora frio estivesse e nevando também, não sentia a neve grudar em suas roupas, nem congelar ao redor de sua boca. Era mais forte que o frio e o frio foi sendo vencido. Quando o sol nasceu já não havia mais a nevasca nem o vento cortante e ele já não sentia os dedos doerem.Quando parou para ver o horizonte, o sol nascendo ao longe, percebeu que havia envelhecido e era homem feito, com a barba grande e o corpo maduro e sentiu-se vivo, mais vivo que antes, sentiu-se vencido e fortalecido. Tomou fôlego e continuou seu rumo, livre e solto, leve para seguir seu rumo. Mas ao segundo passo ouviu lhe chamarem: menino... menino... Era o velho, agora mais velho, que vinha ao seu encontro; agarrando-o em seus braços disse-lhe: leva-me contigo menino... não me deixa só. O menino desvencilhou-se do velho e disse: não estás só, tens teu cobertor; e partiu deixando o velho para trás.


Imagem de autoria desconhecida.

20.1.08

Maldição


Mil raios caiam sobre o dia 12 de outubro de 1974. Que o Senhor do Tempo rasgue a linha dos acontecimentos e fulmine da história essa data, vaporizando todas as suas horas de modo que nenhum minuto torrado sobre como testemunha da história. Que o fatos deste dia se dissolvam como o açúcar na água e nada do ocorrido nas suas vinte e quatro badaladas pulule a mente dos que vivem. As trombetas dos Anjos Vingadores soarão ensurdecendo todos que proferirem o nome do dia. Aqueles que ousarem enganar as engrenagens do rumo da história para tentar recuperar a memória deste dia inexistente terão náuseas, perderão as capacidades físicas e acabarão igualmente anulados. Os brinquedos dados às crianças nas primeiras horas da manhã deste dia desaparecerão. Os beijos trocados pelos casais apaixonados lhes serão retidos. Os moribundos não morrerão, desencarnando no dia seguinte. Às parturientes se aumentará um na contagem da gestação. Os encontros não se concretizarão e tudo, exatamente tudo, que ganhou luz, cor, forma, suspiro e gemido, felicidade e tristeza, sendo passível de lembranças posteriores, nada terá efeito existencial. A Terra dormirá no dia 11 e acordará no dia 13 sem que alguém perceba o dia que nunca existiu. As referências escritas desse dia serão apagadas, mostrando apenas um vazio branco que também se refletirá na cabeça dos que ousarem puxar qualquer mínima lembrança deste dia.


Imagem: Luca Guglielmo.

18.1.08

A boca e o pescoço


Conta-se que há muito tempo havia uma boca peralta e solitária, que perdia seus dias a vagar sem rumo e numa de suas andanças ela encontrou uma curva, uma ligeira curva que nunca havia avistado antes.
Achegou-se devagarinho, encostou seus lábios e percebeu se tratar de um pescoço, naquela parte que horrivelmente foi chamada de cangote, e ali sentiu um calorzinho aconchegante, mas peralta que era, essa boca contraiu-se num biquinho e assoprou.
Assim nasceu o arrepio que mais danadinho ainda saciou por aquele pescoço, arrepiando os pelinhos mui diminutos e eriçando a pele e, embestado, correu pela coluna, descendo em rodopios.
Porém, o pescoço assustou-se, quem era aquele que lhe provocava aquela sensação de torpor? aquele gostoso e inquietante formigamento? e que ousou invadir-lhe o resto do seu corpo assim sem consentimento? Indignado virou-se para que os olhos pudessem flagrar o abusado. Eis que ao virar, mui bruscamente, os olhos viram-no e os lábios encontraram aqueles lábios ousados e quando intencionou protestar, calou-se, porque as palavras não vieram. E do encontro dos lábios, tão pertinhos, tão juntinhos, quase colados, cresceu a vontade, feito bolo em forno quente, e da vontade nasceu o beijo, beijo buscado pela boca peralta e que também saciou arrepios no pescoço.


Imagem de autoria desconhecida.