28.12.09

Ano novo


Do alto, olhou o que havia se passado e viu que fora bom. Conferiu cada dia passado e acertou de que eles se sucederam na ordem prevista. Sem mais o que fazer, consultou o relógio: o último minuto. Então, o Senhor do Tempo pousou sobre a linha dos acontecimentos e cravou o ponto final em 2009. No passo seguinte, amanheceu 2010.


Imagem de autoria desconhecida.

24.12.09

Ceia


Estavam todos à mesa farta: a esposa, os filhos, os netos, a famíla, os amigos. Que conversavam e riam e comiam e trocavam afagos. As crianças dividiam a atenção entre a comida e o brinquedo novo. Sorriu, discretamente, feliz e ficou a admirar a cena. Quando fitou a árvore ao fundo da sala, viu uma pequena estrela adentrar a janela e parar sobre o presépio. Atentou com mais cuidado e viu na manjedoura um bebê pegar os pés com as maozinhas e levá-lo quase à boca. Sorriu. E tornou a cear.


Imagem de autoria desconhecida.

16.12.09

A gente agora já nao tinha medo


Ele sabia: no fim, havia apenas a certeza de estar sempre começando. Sabia que era a vida, mais que a morte, a que não tinha limites. E deveria viver corajosamente. Mesmo que não soubesse para onde ir.
Mas foi, no sozinho do vago, que compreendeu, que acordou para uma história sem névoas. Bastava começar, começar pelo começo, seguir até o final e então parar; para o viajante que não sabe para onde quer ir, qualquer mapa serve. E pôs-se a caminhar...
De fato, era um dos homens bons; mesmo que não o enxergasse, ele carregava o fogo. Todas as estradas, todos os mapas, todos os rumos levavam-no a ela. E sua própria consciência o inquiria: “há quanto tempo não te arde o coração?”.
Olhando nos olhos, disseram-se, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Porque o que há é homem humano, e as pessoas não estão assim terminadas. E se, das habilidades que o mundo sabe, a que faz melhor é dar voltas, a vida não era mais do que essa sucessão de faltas. E falta, ela lhe fazia demais.
Deram-se as mãos. Viver é muito perigoso, mas ao lado dela era saborosa aventura. Sussurrando ao ouvido dela, disse-lhe: “não solta da minha mão”. Fosse uma estrada ou o mundo inteiro, ao lado dela bastava-lhe sonhar. E disse: “como é simples! A gente agora já não tinha medo”.


*Conto-colagem com trechos de obras de: José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Inês Pedrosa, Cormac McCarthy, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles, Chico Buarque, Marcelo Camelo, Fernando Sabino e Lewis Carroll.


Imagem de autoria desconhecida.

7.12.09

O homem com um sonho


Sonhou ele com um guri. Duns cinco anos; aloirado. O guri sempre caminhava alguns passos a sua frente. E lhe chamava de avô. Ele o seguia, como se precisasse protegê-lo ou cuidar de seus passos.
O garoto, a cada pouco que andava, abaixava para pegar as quinquilharias da rua: uma concha aqui, um graveto ali, uma pedrinha verde brilhosa reluzindo o sol, uma folha avermelhada de ressequida. Andava seus passos meninos e conferia se o avô o estava cuidando.
Ele o acompanhava; mãos nos bolsos, ideias incertas. Tão só olhava o garoto caminhando, sempre à frente, por aquele caminho que se fazia eterno. Apenas caminhavam, sem saber o rumo, o destino, o propósito, o porquê. Mas lhe sobreveio a súbita certeza de que, quando parasse de caminhar, o menino seguiria adiante: de algum modo caminharia, um pelo outro, para o infinito.
No entanto, foi o guri quem parou e esperou o avô se aproximar. Uma das mãos segurava as coisas que colheu. A outra entrelaçou os dedos do avô. Encarando-o, disse:
“Vô, compra um sorvete pra mim? Compra? De chocolate”.
Despertou sentindo o solavanco do ônibus. E sorriu envergonhado pelo modo como acordara e porque achou peculiar sonhar-se velho. À sua frente, um menininho loiro, com a boca lambuzada pelo sorvete de chocolate que segurava, lhe sorria. Então levantou-se, acariciou o guri e lhe disse:
“Prazer, meu nome é Julian”.

Imagem: Kaelen, de Nicholev Vintage Textures