29.12.07

Lábios amortecidos


O beijo fez a curva, vem que vem, a trote rápido, galopando feito corisco mato adentro; engata a primeira, põe lenha na fogueira que vem a serra; a caldeira ofega, geme que até parece que quer explodir. E na subida, quase descarrilando, encontra os lábios dela e sem volteios pára na estação por uns instantes, sem arrefecer volta a deslizar sublime seu corpo quente.
E suam e se enrolam e se embolam um no outro, exploram-se como caçadores da arca perdida em busca do santo graal. Se encaixam e seguem rumo juntos, no mesmo ritmo e mesmo trote, embalados pelos sons grunhidos ao ouvido do outro.
Deslizam noite adentro, perdidos no breu sem rota ou destino certo: travessia rumo ao paraíso cá na terra, iluminados à luz da chama acesa lá no escondido do olhar de cada um. Ele a domina e ela deixa ser dominada, mas também explora à noite seu corpo forte, o quer todo para si e por isso prende-se nele, agarra-se aos seus braços, arranha suas costas.
Rolam encosta abaixo, rolam defronte ao mar da tranqüilidade, embolam-se e já não é mais possível vê-los dois, são um, apenas um. Ele a toma pela mão e a guia noite sem-fim ao descampado, onde deitados, ele a leva para outros mundos distantes, a eleva às estrelas, cálidas e cintilantes no escuro celeste. Ela se deixa levar, fecha os olhos e viaja àquela fantasia, são suas todas as estrelas que se multiplicam, explodem e se apagam.
E o beijo vem, subindo, já avistando o ponto de chegada e por isso cede velocidade, avança compassado, deixando rastro pelo trajeto, primeiro circula o recôncavo da barriga, escala os peitos, subindo e descendo espiralado, atinge o pescoço, cada recôndito mais inalcançável, serpenteando o traçado e por fim encontra seus lábios, amortecidos de amor.


Imagem: Passion, de Nora Patrich.

16.12.07

O escritor


Era um escritor.
De títulos; apenas isto.
Títulos originalíssimos, colagens astutas, ditados subvertidos, trocadilhos inteligentes.
Títulos que numa prateleira chamaria qualquer leitor desatento, quase um clamor persuasivo de “leia-me”.
Títulos que invejariam nobeis, pulitzers, camões e jabutis.
Porém, nada mais: nenhuma história, nenhum personagem, nenhuma invenção literária, nenhuma neo-estética lingüística. Sequer o ponto e a vírgula.
Era um escritor de títulos.
Tão-só títulos.


Imagem de autoria desconhecida.

15.12.07

Chove


Chove. Duma chuva grossa e pegajosa e lhe é difícil manter os olhos abertos, as pálpebras pesam e a água as deixa mais mesadas e quando consegue abri-los é como se ela entrasse nos olhos, desfocando as imagens e irritando a visão. Também respirar, o ar tornou-se demasiado úmido e a chuva invade os pulmões, impedindo-o de inspirar um pouco de ar. Tampouco conseguiria andar, há um lodo lamacento que lhe suga terra adentro igual areia movediça.
A chuva começa a formar veios na terra, tecendo meandros pelo terreno pedregoso, escoando aquele aguaceiro encosta abaixo. Já não sabe mais o que é água caindo e água caída, tudo parece um infindável véu d’água bailando de cima abaixo e de baixo acima. Não havia abrigo para si, tampouco o procurou, havia desejado de muito aquela chuva e agora se entregava a ela.
A chuva foi desmanchando-o, levando consigo tudo que havia dele, feito pingo de tinta sumindo na correnteza dum rio. Não se afogou, apenas deixou a chuva leva-lo, transportando-o para um outro lugar, distante daquele ambiente hostil, permitiu à chuva minguar a última réstia de esperança que em si havia, porque chega uma hora em que os minutos se somam dobrados e as esperanças afogam-se à deriva na inundação da primeira tormenta de verão.
E foi o que fez, esperou parcimoniosamente a primeira e abandonou-se a ela, afogando não só suas esperanças enfraquecidas mas também seus sonhos destruídos. Entregou-se à chuva, pois sabia que essa chuva era um último sinal, tal um choro, contudo um choro muito de tempo guardado, que quando vem rompe as comportas e carrega consigo o que tromba pelo caminho, mas que carrega aquela terra de muito dantes pisada para outros solos virgens. Ali, naquela tão-só paisagem, ninguém passa, ninguém corre da chuva, ninguém corre na chuva, é apenas a chuva caindo tão-só, escoando-o pelos veios em que se fez rio diminuto.


Imagem: autoria desconhecida.

9.12.07

Olhar frio


Da infância poucas lembranças guardamos; como se o Senhor das Memórias tomasse a si nossas lembranças da meninice, se bem que roubo não pode ser, pois este mesmo Senhor das Memórias nos devolve algumas rememorações que vem sem propósitos aparentes, tal lampejos repentinos, imagens fugazes que no segundo seguinte desaparecem.
Viveu toda a sua infância numa grande cidade, da qual nunca se esqueceu e de todos os seus amigos guardou uma em especial. Eram irmãos, mais irmãos que se tivessem o mesmo pai e a mesma mãe; conviveram juntos até que ele completou dezoito anos e foi-se, porque a todos chega a hora de partir, naquela única viagem que se faz sem saber destino e muitas vezes sem saber se ela se concluirá. Uma vez quando criança, um detalhe lhe chamou a atenção: brincavam ele e a amiga na casa dela de um pouco de tudo: gude, baralho, jogos de tabuleiro, de pegar... Enquanto jogavam gude, numa de suas jogadas, a bolinha rolou até a sala ao lado, à direita. Correu apanhá-la. Na sala escura, pouco iluminada pela luz de um abajur, uma senhora, velha, mas não mais que quarenta e cinco anos, acabara de ter um escalda-pés e enxugava-os; ela pousou os pés sobre o tapete, onde a luz iluminava com suficiência e ele reparou: no pé esquerdo faltava o dedo mindinho.
Anos mais tarde retornou, porque algumas dessas viagens são assim, cíclicas e assim sem muito entender os porquês, retornou por dias breves; já era homem feito, estudado e crescido, mas sentia que alguma coisa ainda o ligava àquela cidade e à sua meninice lá deixada. Queria ver a amiga, quiçá a única de suas pontes com esse cheiro do passado; marcou um encontro com ela para dali a dois dias.
No dia, preparou-se com muito asseio. Chegou na casa dela quinze minutos atrasado e foi recebido por um senhor que reconheceu ser o pai dela e foi introduzido na mesma sala onde costumavam jogar gude. Ela delongou-se alguns minutos para descer. Durante esse tempo, ouviu o homem gritar e ordenar afazeres a uma pessoa na cozinha, que ficava à esquerda. Quando ela apareceu, deram um grande e demorado abraço e repararam um o outro; reconheceram-se de imediato. Eram os mesmos amigos de quando crianças, só que agora adultos; mas havia um quê estranho nela; parecia que um procurava algo no outro, algo da infância. Então escutou o barulho de um balde caindo ao chão na cozinha. Impulsivamente dirigiu o olhar e viu, pela porta, uma escova no piso. Viu uma mulher se ajoelhar e pegar a escova para esfregar o chão. Era uma senhora, velhinha, mas não mais que sessenta e cinco anos, descalça e no seu pé faltava o dedo mindinho. Encararam-se. Era isso: o olhar frio. Em choque e desespero, num choro quase compulsivo, saiu correndo da casa.


Imagem: Porta, de António Ferra.

3.12.07

Castelinho de areia


Era criança e, como toda criança, tinha uma família e, como toda a família, participavam de festas de fim de ano e, como todo fim de ano, viajavam à praia e, como em toda a praia, havia crianças brincando de construir castelo de areia e ele era uma dessas crianças. Nem se lembrava das incansáveis idas e vindas de lá para cá e de cá para lá a trazer incansável o baldinho cheio de areia.
Havia uma alegria declarada, alegria de criança que vê o simples empreendimento duma singela brincadeira tomar forma e viço, e trazer à tona as memórias o tempo de criança era-lhe mais que uma alegria, uma felicidade, pois era essa felicidade da meninice, do tempo das idades de construir castelinhos de areia, a fuga das durezas do tempo que a vida desenrola distante da infância.
Deixava-se perder nos recônditos das lembranças, inclusive transportado para lá, podia sentir o cheio da areia molhada surgindo enquanto cavava o fosso, a areia grudando em suas pernas e até a pequena pinçada que certa vez lhe atacou um siri e nessa hora seu dedo latejou de dor, lá e aqui nas lembranças.
Desta vez, a lembrança adiantou alguns dias: estava tão perdido terminando a última e mais alta torre do castelo quando ouviu o badalar de sinos ao longe e em pouco tempo as crianças na orla se alvoroçaram; ele mirou a direção de onde vinha o barulho e viu o papai-noel cercado de meninos e meninas, que ganhavam dele balas e pirulitos e então lhe veio à mente: era natal! e sem querer descuidou do castelo uma onda forte invadiu e encheu o fosso do entorno e trouxe abaixo todo o castelo, esfacelando num golpe seco a torre ainda inacabada, que se dissolveu n’água – em vão quis ampará-la.
Chorou, como toda a criança chora diante de revés, e despertou das lembranças com as lágrimas escorrendo-lhe no rosto e lhe abateu a angústia de quem deixa a porta da memória aberta e não percebe a entrada dos invasores indesejados. E despertado olhou ao seu redor e viu que era natal e desatou num choro compulso, tentou secar a face com suas mãos tremulentas e velhas, mas não foi possível: por entre seus dedos ainda escorria alguns grãos de areia.


Imagem de D Sallary.