29.10.07

A crucificação do santo padre


Quase se lhe rasgaram as mãos, que gotejavam sangue e também doloridas; da mão direita não conseguiu despregar o prego, a força foi assim muito intensa que lhe ficou na palma um pequeno buraco, donde se viam músculos, ossos, artérias e veias. Com a mão direita livre, tirou a muitos custos o prego da mão esquerda, ferindo os dedos também em carne viva e o sangue escorrendo em filete pelo braço.
Ainda faltava o prego dos pés, que demorou mais a tirá-los pois era maior que os das mãos e a dor igualmente mais intensa. Antes de descer da cruz, retirou da madeira o prego que ficara nela cravado; esse parecia ter sido pregado com mais vontade – não à toa o ferimento que lhe provocou na mão direita – e levou os três cravos consigo.
Desceu da cruz e ao olhar toda a vastidão da basílica em penumbra viu o santo padre ajoelhado num genuflexório rente às escadas do altar. Aproximou-se, mas não foi notado. O santo padre rezava em meditação, absorto e de olhos cerrados; tocou-lhe a mãos com sua mão direita ferida.
O santo padre despertou assustado, costuma ali estar só, e mais se espantou ao vê-lo diante de si. Disse ao santo padre: esta não é a minha igreja, minha igreja é a do perdão não a condenação, minha igreja é a do acolhimento não a da exclusão, minha igreja é a da humildade não a da humilhação, minha igreja a do respeito a meu pai não a do temor ao diabo, minha igreja é para a glória de deus não para a glória dos homens; e continuou: em verdade em verdade vos digo: não mais o que ligares ou desligares na terra será ligado ou desligado no céu.
Fitou o santo padre nos olhos e disse: nesta tua igreja que construístes na terra és tu quem deve estar crucificado; abriu as mãos do santo padre e depositou nas suas palmas os três pregos usados para lhe crucificar e partiu, sumindo na penumbra da basílica.


Imagem de Vincent Vanderveken.

17.10.07

Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte


O cheiro da morte era perceptível ali, seu pisar fazia levantar um pó fino que impregnava nos seus poros e adentrava seu nariz; era difícil respirar. Aquele pó denso, forte trazia o cheiro característico da morte, cheiro só sentido quando ela nos rodeia. A terra estava seca, estéril após tanta vida morta sobre si; as carcaças e esqueletos semi-enterrados provavam que ali era o lugar da morte.
Mas a morte ali não estava, o lugar era vazio, um imenso vale decrépito onde a morte apenas havia. Mesmo sem a luz do sol, não havia escuridão... era tão-só a ausência de luz, como ausência de vento, ausência de calor – ausência apenas. Também não havia cor, era um cinza amarronzado, cor de pó, cor do pó das infinitas peles e dos infinitos corpos que ali jazeram. Havia ali um som, um grunhido abafado, lamurioso, mas era um som cego, surdo, que ele pensava ser o som do silêncio.
Cada vez que ele cutucava a terra com a bengala, fazia exalar o cheiro da morte; o golpe da bengala na terra era igualmente abafado, como se ali fosse proibido a propagação de qualquer tipo de som.
Vagou por aquele vale sentindo-se tão morto quando a morte presente no local; de fato estava morto... só morte havia ali. E já no final do vale, quando uma enorme pedreira erguia-se à frente, feriu a terra mais uma vez e dessa vez sentiu a terra fofa e um cheiro úmido exalado... olhou para o chão curioso e viu um pequeno dente-de-leão. Agachou-se. E sem arrancá-lo assoprou-o; ainda que andasse no vale da sombra da morte, era a vida que ali vingaria.



Imagem: Dente-de-leão, de Arthur Netto.

5.10.07

Ao teu ouvido


Queria dizer te amo, olhar em teus olhos e sentir o gosto dos teus lábios, mas tu sabes: falta-me a coragem. Há esse medo tolo de tornar real meus sonhos contigo, talvez porque neles tu seja eternamente meu e há também algo que não sei, que subverte minhas razões quando tu silencias minhas voz, quando tu estás presente em minhas ausências.
Um dia sonhei que tocava tua pele, acariciava teu rosto e depois te despia para dedicar meus beijos a cada porção do teu corpo, deste templo a que me curvo em devoção e entrego em sacrifício.
Tu não sabes, talvez jamais lhe fantasie as idéias de que tenho amor por ti, de que sonho contigo em meus braços, para que assim te percas em meus abraços e eu me embole em teu corpo ao ponto de confundirmos.
Sinto teu cheiro na tua saudade, ouço tua voz nas minhas lembranças de ti, vejo-te espreitar-me por detrás das árvores, percebo tua presença no lado vazio da cama todas as manhãs. Mas quando te toco, tu te esvais dissoluto na poeira ébria do amanhecer.
És tu sim que amo, és tu que quero na ponta extrema da minha vida, para olhar por sobre os ombros e ver o caminho vencido ao teu lado. Mas tenho medo, medo da tua rejeição, medo que o encanto se quebre, medo de que teu espírito se torne um fantasma.
Eu te amo, não me canso de dizer-me isso, só não sei quando irei conseguir olhar nos teus olhos, mesmo que hipnotizado, ou dizer sussurrando ao teu ouvido, que te amo.


Imagem de autoria desconhecida.