28.7.07

Casa nova

Bem-vindos à casa nova.
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Fuga de si


Havia uma angústia, um ar seco, sufocante, denso, poeirento... e a angústia se lhe era maior ao gritar e sentir a voz entalar enviesada na garganta ecoando o grito de socorro dentro de si. E era assim: fugia das multidões, pávido de se ver refletido nalguns rostos transeuntes, se ausentava dessa horda histérica de iguais a si mesmo, numa falsa intenção de ausentar-se de si, anulava-se nas horas inconscientes praguejando contra sua incontrolável consciência. Um processo de fuga, como se fugindo dos outros conseguisse fugir de si – entender aqueles humanos no seu mundo era não entender a si e se buscava minimamente olhar-se no espelho e poder responder suas perguntas. Assim, nessas horas de incompreensão muda é que entrava em si, introspectivo e procurava pelo seu perdido nalgum canto lúgubre. Perdido nesse labirinto vinha-lhe a vontade de gritar, um calor sonoro que lhe subia o corpo, desde os poros da pele, mas a passagem travada lhe impedia de pôr o grito fora e aquele mal inaudível lhe queimava o âmago, lhe doía a alma e lhe angustiava tirando-lhe o rubor da face e a vida dos olhos.


Imagem: Fuga, de Henrique Augusto.

A esquecer-se da vida


No dia seguinte não fez o de-comer, nem o desjejum ou pequeno-almoço, nem as outras refeições do dia, sequer uma água-e-sal ou a torrada esquecida no fundo do pote de torradas. Não aderiu àquelas pirações de greve de fome; iniciava, pois seu intento de esquecer-se da vida. E, como conseqüência da barriga vazia, não fez as necessidades fisiológicas normais a um não-birrento. Deitado na cama, decidiu não mais andar e não mais andou, como também decidiu não mais mexer braços, mãos e pés e assim não mais mexeu braços, mãos e pés. Fechou os olhos e não mais os abriu, desistindo de ver as coisas todas tolas que seus olhos sem algum senso crítico lhe projetavam nas retinas.
Dormiu e não mais acordou; deixou-se ficar perdido naqueles sonhos ou dormências, mas ainda tinha vivo os pensamentos, as angústias e aquelas coisas todas encaixoladas, impregnadas tão encalacradamente.
Como último passo, decidiu não mais pensar e sua mente entrou num estado híbrido de inércia e hibernação, ficou-lhe apenas um fundo preto às idéias, sem sequer aquele fio brilhante apontando a cessão das atividades vitais. E assim esqueceu-se da vida e ficou assim até que a vida esqueceu-se dele.


Imagem: Vida, de Rodolfo Franco.

Eternamente divagar


Mire e aperceba, que lá, a algumas léguas e meia daqui, num canto mais longe que minhas idéias de lonjura desenham, lá nos arrabaldes donde nem conheço, há um moço, moço-rapaz dos olhos acastanhados. Parece que ele é meio amalucado, feito doido, sabe?, mas sei bem que tem nele quê de estranho, só que um quê de estranho de bom, quê de estranho que me transmite alegria e essa paz calma que sinto assim aqui dentro. As vontades é de estar lá, com ele, perdido na louca fantasia de sentir seu lábio num beijo roubado, só quer num beijo roubado e depois fugido, pra que esse moço-rapaz embeste de tomar a si de volta o que lhe roubei. As vontades também é de brincar com seu corpo, sentir de frio a quente a cada passo avançado dos meus dedos, e assim caminhando por entre vales e morros, florestas e pampas findar a viagem no paraíso cá na terra. Já encaxolei que um dia embesto de romper as léguas; um dia desses me arranco daqui, pé na rua rumo ao norte, coração guia de minha de viagem. Mas quero chegar de mansinho, assim sorrateiro, nem barulho nem sobra nem cheiro; na surdina, tapar seus olhos e trazer seus lábios ao meus... mire que já estou sim nem sei como dizer como. E ao lado dele, o rodopiar dos dias quero bem lento pra que um dia seja dois e meu passar com ele, dobrado; quero tudo errado pra com ele fazer acertado e o tempo assim parado, pra com as idéias nos beijos dele eternamente divagar.


Imagem de autoria desconhecida.

Asozinhado


Quando levou a primeira rasteira do Dia, às nove e meia da manhã - não, ele não caiu por distração, de fato o Dia, numa certa traquinagem, resolveu lhe derrubar logo do início da manhã - decidiu viajar a seu mundo, um lugar deserto, colorido com suas próprias alegorias fabularias. Era-lhe simples, bastava com a mão abrir a fenda no espaço e passar pro lado de lá sorrateiramente, sem dar motivos ou permitir que o vissem migrar. Lá dormia durante uma parte do tempo, tempo que corria mais rápido, numa velocidade ideal para fazer o dia passar a galopes e assim enterrá-lo em definitivo no mausoléu do passado. Outra parte do tempo, ficava a conversar consigo, mas o seu eu desatinado, incompreensível e inacessível. Ali vivia histórias de reis e nobres, histórias de prêmios ganhados, de amor desejados, ali era o que era em sua essência. O asozinhar-se lhe permitia ao menos curar-se do tombo inesperado da manhã. Ali ficou um tempo indeterminado a nós, um tempo em que pôde resetar sua memória e alegrar-se a ponto de poder retornar ao mundo, mesmo desejando ser só eternamente.


Imagem de autoria desconhecida.

Medo


Enfim cá estamos, não? e já atrasados. Sente e te acalma, pois fugir dessa conversa não dá mais. De fato nós fugimos um do outro e topamos assim aqui num momento em que não esperávamos, sim estamos protelando, embora não saiba eu que queres de mim. Quero que nos entendamos qual caminho seguiremos. Eu para cá e tu para lá, de preferência sem tua sombra me perseguir. Impossível, conjugamos o mesmo corpo, a mesma pele e a mesma consciência. Não! Tenho cá a minha e tu pensas como achas ético, cá minha pensadura só me incomoda quando tu metes o bedelho e aí tua ética conflita à minha e daí fica eu e tu assim. Enquanto insistires em ir para lá e eu pro lado contrário bateremos cabeça feito bois irracionais. Tá se sou a e tu z, como seremos nós dois uma só letra? ... ... ... ... Viu, não tens a resposta. Mas juntos deveremos chegar a ela. É impossível, incabível; vais fazer que coisa? matar-me ou a ti? Sem eu tu não és e sem ti eu não sou e só vais ser uno quando eu escolher morrer e do contrário a mim. Os dois se levantaram já bêbados daquela mesa de bar. Cada um tomou seu rumo, mas andaram juntos, porque eram as duas personalidades de uma pessoa.


Imagem de autoria desconhecida.

Felicidade vencida


Abriu os braços para sentir a brisa que ventava no alto daquele prédio. Não era bem uma brisa, era um vento intenso, forte e envolvente, um abraço frio, daqueles que arrepia os pelinhos dos braços e ouriça a nuca, mas não frio a ponto de gelar a cara. De braços abertos, o vento tremulava a camisa xadrez como bandeira e agitava o cabelo longo, querendo carregar os fios acastanhados.
Inclinou-se a frente muito sutilmente, pequenos graus de desafio ao vento: quem venceria ele ou o vento? Às vezes o vento dava sinais de desertar, de render-se incondicionalmente à batalha vencida; uma estratégia de guerra para reunir forças e voltar arrasador. Contudo, no meio dessa querela, descobriram-se amigos, ele e o vento.
Despiu-se para sentir a intensidade do vento, para sentir cada golpe, cada corrente tocar-lhe todas as partes de seu corpo e envolvido pelo vento, inclinou-se a ponto de vencer a resistência, inclinou-se entregando-se a um lépido momento entre o limiar da vida e da morte e deixou-se cair do alto daquele prédio, rompendo o vento e deixando-o conduzir-lhe à felicidade vencida; entregou-se ao vento, que a cada sergundo tornava-se mais intenso.

Imagem de autoria desconhecida.

Bis


Talvez seja assim isso que se chama amor: um toque de mãos, um simples toque que explora cada dedo, cada linha - a do amor, a da vida, a da emoção e até as que nem foram traçadas ainda. Durante o toque de mãos, ele sentiu um calor, daqueles calores que surgem dentro da gente quando o coração derrapa e que arde feito brasa. Os dois olharam-se nos olhos, a ponto dele se perguntar donde vinha aquele brilho que nos dela havia e, tentando encontrar a resposta para tal questão, aproximou-se tão perto dela que os seus lábios ligeiramente se tocaram. Ela fechou os olhos e sonhando recebeu dele o beijo e os afagos no rosto e o cafuné na nuca. E, é claro, um só beijo multiplica-se feito praga danada de gostosa em outros infinitos beijos - impossível contá-los. Nem dá vontadinha de parar de beijar, nem de des-abraçar. À noite, ele lembrava-se dessas horinhas neutras e talvez seja assim isso que se chama amor: transformar em sonhos as lembranças de tais horinhas.


Imagem: O beijo, de Auguste Rodin.

O outro lado da rua


Olhou-me duas, quiçá três vezes, até me reconhecer e me reconhecendo seus olhos estalaram, numa reação de querer fugir e querendo fugir não acelerou o passo nem mudou a rota, como se quisesse por algum motivo fitar-me o tempo todo e querendo fitar-me o tempo todo parecia apaixonada e parecendo apaixonada seu coração procurava nalgum canto de sua mínima razão o antídoto e procurando o tal antídoto se deu conta de que não conseguia parar de olhar-me. Também a olhei, para forçá-la me reconhecer e a forçando me reconhecer também realizei que estava apaixonado e estando apaixonado quis beijar-lhe a boca, afagar os cabelos, tê-la em meus braços e tendo-a em meus braços, o tempo pararia para que só houvesse nós dois se amando no mundo e nos amando seriamos um só corpo e uma só alma. Mas não corremos para junto do outro, nem sinalizamos gestos apaixonados... apenas trocamos olhares sinceros, de cumplicidade, eu cá e ela no outro lado da rua.

Imagem do filme "O efeito borboleta".